Sonhos de infância
As mãos. Os olhos. O coração. Essas são as partes do corpo que eu mais uso. Não é à toa que sou aprendiz de cozinheira e de escritora. Duas atividades que exigem o uso dos dedos. Da observação. Do sentir.
Cozinhar e escrever sempre foram os dons que permearam a minha vida. Desde a minha infância na Zona Leste de São Paulo, numa casa térrea e comprida, com quintal e jardim.
Lá nos fundos, ficava a cozinha da dona Cida: a minha mãe. Foi onde surgiu a minha vontade de aprender culinária. Ali, sob o som de música que vinha da TV de tubo antiga, ligada na sala. No palco, os calouros do Raul Gil cantavam, enquanto eu dava meus primeiros passos na cozinha.
Sob os olhos atentos e as explicações da dona Cida, eu batia e decorava bolos. Fazia biscoitos, tortas e até sonhos!
Sim, sonhos: para quem não conhece, uma massa de pão doce frita e recheada. E meu sabor de infância preferido.
Eu me lembro da receita do livro verde que ficava na prateleira da sala, perto da TV: “Sonhos recheados da vovó Mafalda”. Então, eu arriscava jogar os meus próprios sonhos no fogo quente. E depois eu os recheava com doce de leite. Por fim, passava todos no açúcar e na canela.
Sempre fui formiga e comilona. Sou louca por comida.
Mas abandonei meus sonhos da infância. E fui atrás do meu sonho de escrever. Virei jornalista. Graças a minha profissão, conheci novos restaurantes. Sabores e receitas.
Trinta anos se passaram. E eu perdi a minha mãe. Este ano, fará oito anos que ela partiu. Eu não ia tocar neste assunto. Porque dói muito ainda. Toda vez que sinto cheiros conhecidos, vou a lugares ou vejo objetos que me lembram dela.
Um deles é a TV de tubo antiga. Aquela que ficava ligada no Raul Gil, enquanto cozinhávamos juntas. De tanto uso, a tal televisão queimou. E não funcionou nunca mais.
Cada um tem seu jeito de lidar com a dor. E homenagear o amor que sente por alguém. A maneira que achei de ficar perto da dona Cida foi tornar-me a mesma mãe e cozinheira que ela foi.
Minha mãe adorava ver a família em volta da mesa. Eu também sou assim. Hoje sei que não saí da cozinha. E a cozinha não saiu de mim. Minhas mãos, meus olhos, meu coração me guiaram até aqui. E a dona Cida sempre me guiará.
#04abr22