Tecido

Andreza Lucena
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readMar 26, 2022

É um tecido cor de rosa encharcado de corações e ursos. Recebi de herança. Fora de prima, de irmã, de outros. Finalmente, muito meu. Morada derradeira. Menina ainda, cobriu-me o minúsculo do corpo. Fez-se escudo quando o céu pintou escuro e o Papão desocupou os armários todos. O pano ocupava-me feito pele dia sim e noite também. Encardido, tão cheio de mim, levaram-no para banhar. Descobri trovão que naqueles dias estaria só. A pele carne viva. Sem mais nada a me cobrir as vergonhas.

Outro não me interessava. Não me vestia como o primeiro. Cheirava diferente ou muito aquecia ou deixava-me à margem. Choros em noite igual e, por fim, o retorno. Um sem fim de mergulhos macios no conhecido daquele tecido. Nunca mais me deixe. Nunca mais sem pele. Nunca mais sozinha.

Anos já passados, muitos. As pernas já compridas, a vida já relógio, a cama já casal. O pano lá. Desbotados corações já rotos. Noite sem claro e abriu-se ao meio um abismo, dividindo o tecido em dois. E o que era lençol fez-se o desespero das noites sem esperança. Da vida sem escudo. O terror das noites sem Pai. Chorei rios de medo, correnteza. E sorri da ilusão de reparar com agulha e linha o abismo dos tecidos rasgados. Dos afetos despedaçados. Das vidas já frouxas.

#Desafio04mar2022

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Andreza Lucena
Clube da Escrita Afetuosa

Escrevo sobre as (des)importâncias e (in)utilidades da vida. Estou no @escrevoemmaiusculo. Aguardo você! =)