“Um bolo de quatro andares”
Dentro do desamparo, no mais recôndito de sua existência, germinava em silêncio uma pequena semente com potencial de vir a ser espécie do tipo gigante
A auto suficiência
Enquanto o desconforto crescia, ela se esquecia de pedir ajuda e agradecia, sempre de modo automático, com a premissa da negação: NÃO-OBRIGADA
Sentia-se Rocha
Um açude vazio que na tentativa de esconder, evidenciava as águas passadas e os escombros que um dia habitava
Ruínas submergiam
As casas de criança, o chão de caquinhos vermelhos colados, os restos dos galhos, os brinquedos ainda jogados de uma infância abandonada
Não sabia mais o caminho de volta, esqueceu como chorar
No entanto, sabia de tudo
Sobretudo ostentava que sabia até mesmo aquilo que nunca soube
Se agarrou a cozinha — o único cômodo da casa que sentia que pertencia
Lugar que pai não entrava e que mãe não cozinhava
Dos vizinhos se apropriava das receitas
Copiava
Era abusada
Certa vez inventou yakisoba, descascou vegetais, usou o molho de soja, refogou com macarrão italiano
Até que ficou bom, o único erro talvez tenha sido convidar a japonesa para demonstrar o que sabia sem precisar de sua ajuda
Pois ouviu o que não queria
Que a massa era inadequada, que a panela não era aquela, que da outra vez fosse comer o verdadeiro yakisoba na casa dela
Mas, como sabia sempre o que fazer, descartou com presteza as palavras que não lhe serviam
Quando os filhos vieram, trouxeram junto deles o pão e alguma redenção
Todos os dias, ainda na cozinha, entre louça-chão-fogão, se esforçava em perdoar sua terra devastada
Refogava tentando retirar o amargo dos anos sem festa de aniversário
E decidiu que todo ano, todo filho teria sua própria festinha para cada calendário que viria
Farinha, granulado, forminha, tema, flores, decoração, açúcar em demasia
Auto suficiência em profusão
Tanta doçura concentrada enjoou
Ficava tão esgotada que sequer via a festa que acontecia, a verdadeira, do dia a dia
Foi necessário um grande dia
Um bolo de quatro andares
Tamanhos e andares variados
Um edifício
Recheado
Adornado
A eficiência no topo, flertando com as alturas, e de passagem, Narciso se apaixonando pela própria imagem
Um bolo/monumento pronto para ser fotografado, na véspera da grande festa
Um minuto depois, desmoronava
Esgotada assistia a cena da derrota da competência e enfim, chorava
O açude se enchia de água, de alívio, de alegria
Molhada, despia a fantasia
A partir daquele dia, a festa se tornou encomendada
E a cozinha, assim como a vida, tomaram seus lugares de contemplação, de prazer e porque não, de cooperação
Afinal, as mãos aprenderam que esticadas para o alto também significam proteção
#desafio004outubro