“Um bolo de quatro andares”

Laura Caldas Chadarevian
Clube da Escrita Afetuosa
2 min readOct 27, 2021

Dentro do desamparo, no mais recôndito de sua existência, germinava em silêncio uma pequena semente com potencial de vir a ser espécie do tipo gigante

A auto suficiência

Enquanto o desconforto crescia, ela se esquecia de pedir ajuda e agradecia, sempre de modo automático, com a premissa da negação: NÃO-OBRIGADA

Sentia-se Rocha

Um açude vazio que na tentativa de esconder, evidenciava as águas passadas e os escombros que um dia habitava

Ruínas submergiam

As casas de criança, o chão de caquinhos vermelhos colados, os restos dos galhos, os brinquedos ainda jogados de uma infância abandonada

Não sabia mais o caminho de volta, esqueceu como chorar

No entanto, sabia de tudo

Sobretudo ostentava que sabia até mesmo aquilo que nunca soube

Se agarrou a cozinha — o único cômodo da casa que sentia que pertencia

Lugar que pai não entrava e que mãe não cozinhava

Dos vizinhos se apropriava das receitas

Copiava

Era abusada

Certa vez inventou yakisoba, descascou vegetais, usou o molho de soja, refogou com macarrão italiano

Até que ficou bom, o único erro talvez tenha sido convidar a japonesa para demonstrar o que sabia sem precisar de sua ajuda

Pois ouviu o que não queria

Que a massa era inadequada, que a panela não era aquela, que da outra vez fosse comer o verdadeiro yakisoba na casa dela

Mas, como sabia sempre o que fazer, descartou com presteza as palavras que não lhe serviam

Quando os filhos vieram, trouxeram junto deles o pão e alguma redenção

Todos os dias, ainda na cozinha, entre louça-chão-fogão, se esforçava em perdoar sua terra devastada

Refogava tentando retirar o amargo dos anos sem festa de aniversário

E decidiu que todo ano, todo filho teria sua própria festinha para cada calendário que viria

Farinha, granulado, forminha, tema, flores, decoração, açúcar em demasia

Auto suficiência em profusão

Tanta doçura concentrada enjoou

Ficava tão esgotada que sequer via a festa que acontecia, a verdadeira, do dia a dia

Foi necessário um grande dia

Um bolo de quatro andares

Tamanhos e andares variados

Um edifício

Recheado

Adornado

A eficiência no topo, flertando com as alturas, e de passagem, Narciso se apaixonando pela própria imagem

Um bolo/monumento pronto para ser fotografado, na véspera da grande festa

Um minuto depois, desmoronava

Esgotada assistia a cena da derrota da competência e enfim, chorava

O açude se enchia de água, de alívio, de alegria

Molhada, despia a fantasia

A partir daquele dia, a festa se tornou encomendada

E a cozinha, assim como a vida, tomaram seus lugares de contemplação, de prazer e porque não, de cooperação

Afinal, as mãos aprenderam que esticadas para o alto também significam proteção

#desafio004outubro

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Laura Caldas Chadarevian
Clube da Escrita Afetuosa

Entre poesias, contos, roteiros, desabafos, fantasias, procuro-me. Portas abertas, entre sem bater.