Procura-se uma boina cinza.

Karol Candido
Clube da Escrita Afetuosa
3 min readMar 20, 2022

Quando era menor, minha mãe tinha uma caixinha. Uma caixinha não, uma caixona. Grande. Feita de ferro, eu acho. Com alguma coisa escrita na tampa, com tinta verde, amarela e vermelha, numa letra bem redonda. Era uma caixona bonita. Muito bonita. Mesmo um pouco enferrujada.

Seu estilo me lembrava algo meio mágico, como se fosse a caixa de um tesouro, saído direto do fundo do mar. Ela me fascinava.

Toda vez que minha mãe a abria, eu saia correndo para ver o ritual. Tinha dia que ela mexia rapidinho. Logo fechava com o cadeado e a voltava para o armário. Tinha dia que ela demorava um tempão. Imersa. Mexendo nas coisas que escolheu guardar ali.

Lembro que ficava olhando e mentalmente me fazia tantas perguntas sobre o que tinha dentro daquela caixa. Coisas que, na época, não sabia porque minha mãe as colocavam juntas. Era tudo muito aleatório.

Tinham fotos antigas, algumas até em preto e branco, uma bolsinha com as suas jóias de ouro, documentos, papéis com coisas escritas à mão, talão de cheque, papel de carta, poesias, um relógio e uma boina do meu avô. Itens que, aos meus olhos de criança, não se conversavam muito bem.

Por que uma boina cinza, nada demais, precisava ser guardada numa caixa, trancada, junto com ouro e documentos? Não sabia o porque, mas minha mãe tinha uma relação curiosa com aquela boina.

Ela a tirava da caixa, fechava os olhos, grudava o avesso em seu nariz e cheirava de uma forma demorada, como se ali tivessem derrubado o frasco do melhor perfume do mundo e ela quisesse nunca mais parar de sentir.

Hoje eu sei o motivo. Usando as palavras dela: “essa boina tem o cheiro da careca do seu avô. Ele sempre a usava para sair”.

Era um pouquinho da presença dele, a pessoa mais importante da vida dela, que foi embora e não voltaria nunca mais. Minha mãe a guardava como uma tentativa de não perder o que já sentiu de mais precioso.

E não perdeu, mãe. Tem muito dele em você.

Não me lembro do tanto de coisas que eu gostaria de lembrar, de tudo o que eu vivi com o meu avô, mas lembro muito bem de quem ele era e do que ele me fazia sentir. E era amor. Seu Mario era amor em forma de gente. Daquelas almas boas que chegam na Terra já mais evoluídas que todo mundo.

Era dele o posto de pessoa que eu mais gostava. Era sempre ele quem eu queria ver ao acordar e não me desgrudava mais nunca, nem para dormir. Era para meu avô que eu contava e pedia tudo. E ele, de repente, foi embora.

As vezes, penso se aos cinco anos eu entendi direito a sua partida e a senti de forma proporcional ao meu afeto. Que era imenso. Talvez não. Na verdade, tenho certeza que não. E sinto como se não tivesse sido justa. Comigo e com ele.

Porque tão cedo, vô? Só queria que tivéssemos tido um pouco mais de tempo juntos. Para tê-lo ainda mais marcado em mim. No modo de pensar. Nas minhas expressões. No jeito que falo. Na maneira que amo. Para ver a forma como você lidaria com as coisas que eu não sei lidar e que acho que ninguém ao meu lado sabe também. É, vô. Hoje eu quem queria poder me recordar do cheiro dessa sua careca de novo.

Eu sei. Eu sei que já foi embora, ao passar desses 25 anos, mas aonde será que está aquela boina, mãe? É só um apelo irracional de saudade.

. . .

Desafio 2 | Março/22

--

--

Karol Candido
Clube da Escrita Afetuosa

Libriana, jornalista, mãe de dois guris, apaixonada por uma boa história, pesquisadora de tudo um pouco e astronauta.