Imagem: Google Maps

Uma decisão e um oceano

Cláudia Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa

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Sabe qual é a distância entre Belo Horizonte e Lisboa? Eu sei. 7456 quilômetros. Ou 12 horas e meia, aproximadamente, de trânsito aéreo. Costumo dizer que gastei uma viagem de ida e volta sobre o Atlântico até o continente europeu para me decidir pela aposentadoria como dentista. Rápido, para alguns. Duas vezes uma travessia de oceano, para mim.

Havia planejado os detalhes do passeio com bastante antecedência. Estaria realizando um sonho acalentado há muitos anos. A vida, porém, gosta de rearranjar as peças do seu quebra-cabeças sem nos pedir autorização. Uns dias antes da viagem, fui surpreendida por um telefonema de um chefe que procurava invadir a minha área de atuação com suas ideias preconceituosas e pouco éticas. Aquilo mexeu com as minhas estruturas de uma forma bem contundente. Trilhava, até então, um caminho ordeiro no trabalho e seguia de forma previsível o roteiro que havia traçado para mim mesma.

Eu era obediente e séria, cuidadosa e envolvida até à alma naquilo que fazia. Trabalhava há 25 anos na mesma região da minha cidade. Talvez até por esse excesso de previsibilidade, não abria muito espaço para ter dúvidas e pensar sobre aquilo que estava fazendo. Sempre que alguma desmotivação ameaçava rabiscar o caderno da minha vida, a disciplina na qual fui forjada vinha com a sua borracha e apagava tudo. Novamente, as mãos zelosas retomavam o traçado em letra redonda para editar a minha biografia, que nunca precisou de pauta para se manter alinhada.

Da janela da aeronave, eu olhava para o escuro das águas que atravessava e mergulhava mais fundo na minha própria escuridão. Encontrei ali medos acomodados e silenciosos, necessidade de aprovação e rigidez camufladas em boas atitudes. Ousei jogar um pouco de luz naquelas sombras e pude ver que já há algum tempo estava cansada da minha rotina. Fazia as mesmas coisas praticamente todos os dias, sem muitos desafios. Havia problemas novos, claro, e eu já ocupava uma posição elevada na hierarquia do meu grupo de trabalho. Nunca me faltou reconhecimento externo. Era querida pelos que cuidava e admirada pelos meus subordinados. Faltava-me a admiração por mim mesma. Percebia que estava estagnada, acomodada em águas paradas.

A conversa com aquele chefe tornou-se apenas a catalisadora de uma mistura explosiva que estava armazenada em mim. Senti muita raiva dele, especialmente por pensar que estava estragando o meu descanso com pensamentos que havia represado com bastante cuidado. Todos os diques se arrebentaram de uma só vez e, embora estivesse no ar, sentia-me afogando naquele mar de dúvidas que eu atravessava e que estava logo ali, dentro de mim.

O avião não perdia altitude a cada turbulência enfrentada, mas eu despencava cada vez mais em questionamentos que me doíam. Para quem estou fazendo o que faço? Por que o trabalho invade todos os espaços da minha vida? Por que tenho medo de fazer coisas novas? Por que não me sinto mais criativa? Por que escondo de mim mesma o meu desânimo?

Viajei para Portugal e voltei ao Brasil após umas férias que foram boas, apesar da jornada interna tempestuosa. Cheguei decidida a fazer uma mentoria para me reorganizar antes da decisão de me aposentar. Por uns três meses, conversei, analisei, perscrutei os meus interesses e valores. Deu trabalho, muito trabalho. Vi que tinha um mundo de virtudes a expressar. Elas haviam sido cuidadosamente guardadas na minha infância e adolescência. Retomei aos poucos os trabalhos artesanais e a escrita. Sabia que muitas lágrimas me acompanhariam na elaboração desse luto e que haveria um medo gigante de me perder nessa decisão. Apesar disso, no dia em que assinei os papéis de saída do emprego, não titubeei. A letra caprichada rompeu o mar salgado que havia atravessado e hoje transita um pouco trêmula e insegura, mas cheia de esperança, pelas páginas que a escrita e a nova vida têm proporcionado a ela.

Cláudia Figueiredo, 12/12/2021

Desafio #1 — Dezembro de 2021

Clube da Escrita Criativa e Afetuosa Ana Holanda

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Cláudia Figueiredo
Clube da Escrita Afetuosa

Membro do Clube da Escrita da Ana Holanda. Busco nas palavras o céu de um novo lar.