Vamos pra frente!
Como se tivesse sido ontem, ainda escuto a minha própria voz: mãe, você vai ficar bem! Tudo isso que você está sentindo vai passar. Essas foram as palavras que eu disse a ela, quando seguia para a sala de cirurgia, a fim de operar-se de uma obstrução intestinal grave. Uma hora antes, tínhamos recebido a notícia de que aquele estado devia-se a presença de um tumor maligno colo-retal, após a chegada do resultado de um exame que daria uma resposta para os sintomas daquele problema. Havia esperança naquelas palavras. Sem saber ainda a gravidade do caso, o médico nos disse que tentaria fazer uma remoção daquele agente invasor que havia se instalado com a ferocidade de quem tem o poder de consumir uma vida.
Passado aquele primeiro momento, soubemos que não havia perspectivas, que o mal já havia se espalhado e era uma questão de tempo. O que fazer então? A partir dali só um especialista poderia apontar um caminho para um lugar onde o final já conhecíamos. Mas o ser humano é estranho e se recusa a aceitar o que não concebe. Então de alguma forma, construímos um castelo de ilusão onde imaginávamos que a nossa mãe não sabia o que a esperava, e depois da primeira consulta onde a quimioterapia foi a direção indicada, ouvi pela primeira vez o meu irmão dizer uma pequena frase que ele repetiria a cada fase de um processo que duraria exatos 9 meses: “vamos pra frente!”. Como numa gestação ao contrário, ao final haveria o nascimento de uma vida, mas não na dimensão terrena.
Nunca irei saber o que se passava na cabeça da minha mãe, mas ela fazia planos e contava o tempo em sessões de químio. A cada mês uma nova consulta acontecia, onde ela recebia uma dose de esperança e nós, uma de realidade. E logo depois, eu voltava a ouvir aquela frase: “vamos pra frente!”.
Enquanto isso, ela seguia seus dias numa contagem regressiva onde acreditava que quando se encerrasse, uma cirurgia seria feita para retirar aquele intruso que a cada dia diminuía seu tempo na mesma proporção daquela subtração que ela fazia sem saber, ou talvez soubesse, que a levaria ao fim daquela estrada tortuosa. Do nosso lado, vivíamos também uma espera, era início de um ano e sabíamos que o atravessaríamos anestesiados, aguardando o encontro com uma fatídica dor e o testemunho do seu como.
Quando a conta dela estava perto de terminar, não pôde continuar porque seu estado se agravou, e como o que tínhamos a fazer era interná-la, assim foi feito. Mas isso não destruiria nossa redoma ilusória e dizíamos a ela que iria ficar bem e seguíamos em frente com meu irmão nos puxando pelas mãos como quem carrega uma cambada de trôpegos. E “vamos pra frente!”.
E no último dia de consciência da minha mãe, em seus sussurros finais, como que tentando nos manter trancados no nosso castelo de faz de conta junto com ela, nos fez prometer que logo faríamos a festa de suas bodas de ouro, finalizando sua passagem nessa existência sem dar o braço a torcer para a morte. E nós ao encerrarmos a nossa missão com ela, sabíamos que agora seria o início de uma nova jornada, dessa vez com o meu pai que, ao contrário da esposa, inconformado com a sua perda, apelou à ceifadora de vidas que o levasse. E vamos pra frente! Continuava meu irmão.
Quatro meses depois, os apelos foram ouvidos e o casal se juntou no inevitável lugar onde é a única certeza que temos, enquanto que nós indubitavelmente tocamos nossa vida em frente, conforme apregoado durante toda essa jornada.
Oriana Freire — Desafio-002/Maio 2022