Vendaval

Michelli Pessoa Marinho
Clube da Escrita Afetuosa
5 min readJul 1, 2022

Aos 15, o vendaval passou pela minha vida. Quase 365 dias de ventos fortes e turbulentos, atingindo o ápice no último momento. Um pico de tensão, romance, traição, cumplicidade, conflito e muito drama.

Conheci o Pedro através da Carol, minha vizinha de frente. Eles estudavam na mesma escola. Séries e idades diferentes. A Carol era a menina “popular”, amiga de todos. Querida por todos. “Resenheira”, como se diz por aqui. Extrovertida, falante. Topa qualquer programa. Engraçada. Faz amizade fácil. Daquelas pessoas que você conhece, se dá bem e entra na vida.

O Pedro era o “amigão”. Voz firme, jeito encantador. Aluno dedicado. Ouviu tanto falar de mim que quis me conhecer. Um dia aconteceu. Atendi o telefone na casa da Carol. Ela estava atrasada, pediu para dizer que logo chegaria. A voz do outro lado quis saber quem era. Respondi. Questionou novamente. E em tom de brincadeira, falou que conheceu (finalmente) a “famosa” amiga.

Eu ri. “Famosa quem?”, respondi. Carol esbugalhou o olho. Observando o que se passava. Dois estranhos ao telefone e em cinco minutos, tornaram-se algo a mais. Deixei a casa e parti para a minha. Me despedi. Iria dormir cedo para a aula do dia seguinte.

Mal chegou do colégio e correu para falar comigo. Eu havia acabado de entrar no banho. Bateu na porta e pediu para falar. Precisava me dar um recado. “O Pedro gostou de você e quer te conhecer”. Indagou. Fiquei sem reação. “Cinco minutos de conversa seriam suficientes para gostar de alguém?”, pensei. A Carol falou que sim, ao ler meus pensamentos e que eu iria adorá-lo. Também lembrou que deu meu telefone para ele. E que me ligaria mais tarde. Eu quis matá-la!! “Como assim deu meu número? Nem o conheço!”

E ele ligou. E conversamos por uma hora (no mínimo). Timbre forte, voz apaixonante. Educado, engraçado. “Fazia meu número”, como disse outra amiga ao ouvir meu relato sobre o novo paquera. E conversei. Pedro passou a ligar toda noite, no mesmo horário. Um, dois, três meses. Não nos conhecíamos pessoalmente. Eu mal saía. Uma rotina dura de estudos mais pais religiosos. Não sabiam do Pedro. Não sabem até hoje.

Antes dos seis meses, ele quis me conhecer. Tentei algumas vezes e nunca deu certo. Seja pela desculpa que não colou para os meus pais, evento desmarcado ou impossibilidade dele. E o tempo foi passando. Mandei foto por Carol. Precisava me ver. Acho que desviaram a foto, porque nunca recebeu.

E naquele descompasso, conhecer (cada dia mais) alguém pela voz fez eu me apegar. Apaixonar. Contar as horas para ouvir novamente. Terminar as tarefas o quanto antes. Eu teria o Pedro ao final do dia para falar. Fosse ruim ou bom a rotina. Ele estava lá. Do outro lado do fio me esperando. Dando colo, de peito aberto e voz abraçante. Nunca senti tanta sintonia com alguém que não conhecia. Conheci. Falava de tudo. Podia ser eu mesma. Ter pra quem voltar no vendaval de estudos, rigidez de lar e descobertas adolescentes.

Além da Carol, a Ana também morava na minha rua. E era minha amiga. Sabia da história. Da dificuldade do encontro. Da enrolação (minha ou dele? rs) e dos pormenores de cada acontecimento. O tempo passou mais ainda. O Pedro impaciente, mas a voz permanecia igual. Um aconchego na alma. Aveludada. Timbre forte. Decidido. Aos 17, sabia o que queria. Queria o encontro. Não podia mais fugir e com quase nove a dez meses de conversas, marquei de vê-lo em um festival tradicional da cidade. Quase não dormi de ansiedade. Roupa nova. Cabelo feito. Unhas pintas. Maquiagem. Brilho nos lábios e no coração para ver um amor chegar.

Era o dia. Vinte e quatro horas de lucidez. Insensatez. “Será que ele iria gostar da realidade?” Fantasiar era mais gostoso. “O sabor seria o mesmo?” Passei o dia com esses questionamentos na cabeça. Coração na boca ao chegar. Suando frio. Borboletas no estômago. Arrepio no braço. Estava a alguns metros dele. Assim que vi a Carol, perguntei: “cadê o Pedro?” Respondeu que estava aguardando também. O conheci em seguida. Dois beijinhos na bochecha. O achei estranho. Não me deu muita atenção. Ao seu lado, Carol e Ana. Conversavam longamente. Me senti deslocada. Um ano esperando aquele momento e ser assim?

Outra amiga estava lá. Saí para comer algo e não consegui voltar. E no meio de tanta gente, me perdi. Passei a festa sozinha, até me deparar com a cena, tipo coisa de filme: teve uma briga e o pessoal se afastou. No mesmo instante, duas pessoas ficaram em destaque. Beijaram-se. Eu não podia acreditar. Pedro e Ana. O meu Pedro. O cara que tô falando ao telefone há meses. Que só conheci pessoalmente agora. “Como aconteceu isso?” Era o que se passava na minha cabeça. Fiquei tão abismada e com coração partido que não tive reação. Emudecida, observei o beijo apaixonado. E corri dali em seguida. Achei a Carol e contei. Ficou pálida. Não sabia o que falar. Naquele momento, percebi que algo rolava e ela sabia. Anterior ao dia de hoje. Eles se conheceram há alguns meses, tornaram-se próximos e começaram (a também) se comunicar. Só esqueceram de contar esse detalhe para mim.

A festa acabou e voltaríamos para casa juntas. Liguei para o meu pai ir buscar. No percurso, apenas o barulho do carro. O vento que batia no meu rosto. Seis da manhã. Amanheceu e havia ficado cinza no meu coração. Sem palavras. Não consegui olhar pra ninguém. Decepção. Angústia. Traição. Quase um ano perdido, desperdiçado com uma voz traiçoeira. Pura lábia. Sotaque de moleque.

Ao descer do carro, as meninas se despediram e agradeceram a carona. Puxei Ana pelo braço. Queria conversar. Carol ficou olhando. Espantada com a minha reação. Enquanto os vizinhos dormiam, ‘lavamos roupa suja’ no meio da rua. Acusei Ana de traição. Sabia de tudo. Todos os detalhes. Dificuldades. Vontades. Verdades. Como deixou aquilo acontecer? Se defendeu. Acusou. Que se eu quisesse conhecê-lo antes, devia ter tentado mais. Fiquei sem acreditar. Emudeci mais uma vez. As palavras voltaram no minuto seguinte. Ana gostava dele. Iria brigar por ele. Discutimos. A decepção maior era com ela. Minha amiga. Conselheira. Confidente. Estranha. Diferente. Me perdeu pelo Pedro. Quis mais ele que a mim. Ficou com ele. Terminamos nosso papo ali. Carol se desculpou. Soube da situação um tempo depois e não soube como falar. Não podia contar. Deixou pro Pedro, que não quis. Cansou de esperar. Conheceu alguém e investiu. Desconectou o fio da nossa conversa. O telefone ficou mudo.

Passei dias sem falar com ele. Não aguentou e me ligou. Esperava desculpas, mas não recebi. Desabafou. Conheceu a Ana em uma saída com a Carol. Esperava que fosse eu e no meio daquele evento, interessou-se. Se não fosse me conhecer, a Ana estava garantida. E ela gostou dele. Nunca senti tantas emoções em pouco espaço de tempo. Culpa. Tristeza. Raiva. Desânimo. Finalizamos nosso contato ali. As juras de amor estavam despedaçadas. E em pedaços, segui.

Não tive mais notícias dele. Ou melhor, deles. A amizade com a Ana ficou abalada demais. Ainda a via, mas bem pouco. Não a considerava mais. Carol continua até hoje. A reencontrei após a vida desencontrar. Eu soube notícias do Pedro muitos anos depois. Fiz faculdade com o primo dele. E por coincidência, descobri que eram parentes. Perguntei se havia foto. Casado, dois filhos, careca e barrigudo. Senti um alívio. A Ana me fez um favor. Levou o vendaval da minha vida. E um amor.

Desafio001/junho/ClubedaEscrita

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Michelli Pessoa Marinho
Clube da Escrita Afetuosa

Jornalista e Radialista. Escritora no @afetodeversos e @vozesdaescrita