Sobre a Ucrânia
Vigor e uma fatia de broa
‘Eles são ucraínos’. Era assim que minha mãe explicava os olhos claros dos filhos e o sobrenome diferente do meu pai. Embora, diga-se a verdade, aquele sobrenome curto e com poucas consoantes em nada lembrasse os eslavos.
Ser ucraíno era diferente de ser polonês. Eles tinham o papa que, numa moldura simples, ocupava um espaço sagrado na parede de nossas avós. Ser ucraíno era diferente de ser italiano. Da Itália sempre se sabia alguma coisa: tinha macarrão, futebol e lugares bonitos que apareciam na TV.
Ser ucraíno não era como ser alemão, holandês ou qualquer outra etnia que tenha chegado ao Sul do Brasil. Nós nada sabíamos da Ucrânia que, na nossa cabeça, devia ser algum lugar ali pertinho da Polônia.
Aliás, poloneses e ucraínos dividiam o rótulo de ‘polacos’ que, para nós, nunca foi ofensivo; era só uma constatação. Ser polaco era uma forma de enxergar o mundo. Uma disposição inquebrantável para o trabalho: pesado, na lavoura, sob um sol inclemente e tropical. Um humor peculiar, que às vezes nos faz parecer rudes, mesmo quando tentamos ser engraçados. Uma fé católica cheia de ritos e regras. Uma culinária nada sutil!
A culinária fala muito sobre a alma polaca no Brasil. Não são cremes nem massas folhadas, como fazem os franceses. Não são molhos e queijos, nem peixes e frutos do mar. São fatias de broa com banha de porco. Broa rústica, densa, em que um único pedaço parece capaz de alimentar multidões (e que se torna ainda maior na boca de uma criança). São repolhos, são batatas, beterrabas e outras raízes. Pratos austeros, mas de muito vigor.
A mesma austeridade e vigor que a gente vê no semblante dos ucranianos que fogem ou que ficam para uma guerra desproporcional às suas forças. Uma guerra que me fez finalmente entender onde é a Ucrânia. Um lugar em que vizinhos se armam precariamente para enfrentar tanques inimigos (talvez por escolha, talvez por falta de opção). Um lugar que produz boa parte dos grãos que consumimos no mundo; e ninguém falava disso!! Um lugar em que um casal de idosos ranzinzas e obstinados expulsa jovens soldados russos que invadiram o seu quintal, pisaram na sua horta ou atrapalharam as suas orações.
A Ucrânia é vigorosa. E a vida ucraniana é aquela broa com banha de porco que alimenta uma criança. Difícil de engolir no início, vai durar horas na sua boca, mas vai te manter vivo e forte por bastante tempo ainda.
Clube da Escrita | Desafio 03 — Abril 22
