Autorretrato do Passado

Gui Moura
Clube da Escrita
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3 min readSep 6, 2017

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Por volta dos 13 anos ele pensou em desistir. Desistir de tudo. Tudo mesmo. De jogar bola, de assistir todos os filmes do mundo, de ter uma banda, de ter uma família tão grande que ninguém se entende na mesa do jantar, de namorar, de colocar queijo nas comidas, de tudo mesmo, de todo o tudo da vida.

Mas não foi ele que escolheu, escolheram por ele. Quem escolheu foi a Bárbara, três anos mais velha. A tal da Leucemia… se você sabe o que isso faz com o corpo não queira saber o que isso faz com a mente.

Só o que ele conseguia pensar ao se fixar naquelas últimas palavras deixadas por ela no MSN era daquela conversa no parque. Falaram sobre como as pessoas são diferentes, sobre como as pessoas são iguais, sobre animes, cores e animais; sobre aquelas coisas que são tão boas que nunca parecem durar demais.

A ficha cai conforme o tempo, não porque se torna óbvio o que aconteceu, mas porque… você desiste de querer entender. Você solta a ficha. Ela cai porque nada vai mudar ao segurar. Demorou pra ficha cair, mas ele sentia a gravidade à puxar tipo uma última gota d’água escapando de uma torneira mal fechada.

Bárbara era incrível. Só era. Não precisava de explicação. Ele não queria explicação. Não queria saber como é corriqueiro jovens perderem a vida devido às demandas da sociedade. Ele a conheceu e sabia que ela era tão viva e real quanto ele era. Só que então ela se deixou de ser.

O tempo o faria encontrar outras pessoas com gosto duvidoso pra piadas e que não sabiam comer casquinha do McDonald’s sem se sujar. Isso não era tão raro quanto ele pensava. De acordo com a ciência, nem nossas vozes e rostos são tão raros assim. E isso viria a ser comprovado quando ele voltou a vê-la em outros rostos e a ouvi-la em outras vozes por aí.

Finalmente ele fechou a torneira pra valer.

Entrou no banco do carona vestido de preto.

O pai ligou o rádio.

Ao som de Easy dos Commodores, ele levantou o rosto para olhar pela janela. Asfalto. Carros. Topo das árvores. Nuvens.

Ao notar a lua no céu às três da tarde, percebeu em uma epifania inescapável que ela não tinha olhos, ouvido, sorriso, preferências, tamanho de roupa, série favorita, nem nada disso. E ainda assim, a lua ia viver muito mais que qualquer ser humano. Que injusto.

Se aquela inquietude não era permissiva à felicidade então já era. O ‘foda-se’ passou a se tornar recorrente no seu vocabulário e durante uns bons dois anos ele viria a exercer mais-do-que-bem-obrigado o estereótipo rebelde adolescente. Até entrar para o teatro e aí já é uma outra história.

Ele não sabia ainda, mas 10 anos depois, todo aquele olhar desafiador contra o abismo não se tornaria nada mais do que a base primeira da sua elasticidade emocional humanística (ele também viria a se sentir bem cool escrevendo ‘elasticidade emocional humanística’). E a estória que o retrataria em seu primeiro desses pontos de virada da vida em que o ímpeto de seguir em frente se sobrepõe a qualquer elemento fantástico que ouse se anunciar no meio do caminho.

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Gui Moura
Clube da Escrita

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