O Primeiro Jogo

Gui Moura
Clube da Escrita
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3 min readOct 4, 2017

Tocava uma música penetrante por entre as árvores da Floresta da Orca naquele fim de tarde. Nerds e aficionados de plantão reconheceriam a música como sendo Song of Storms do Zelda. Mas ali, naquele microuniverso em questão, tamanha percepção não se daria tão facilmente.

Fazia cinco horas que Julia, Raquel, Pedro, e Miguel brincavam no carrossel. Suas bochechas doíam de tanto riso, seus corpos estavam fadigados de tanta diversão. Mesmo pra uma criança, a brincadeira precisa acabar em algum momento.

Tudo começou quando eles brincavam com um jogo novo que a mãe de Miguel trouxera da fábrica de brinquedos onde trabalha. Seu nome era Dixit. Mas não era um Dixit qualquer desses que você pode comprar na loja de brinquedos do seu bairro por cento e oitenta e nove reais e oitenta centavos em até doze vezes sem juros no cartão. Não. Esse era o Dixit original. O pai dos Dixits. O primeiro Dixit. Desenhado à mão pelo próprio Jean-Lous Roubira, criador do game.

O que esse artefato tão importante estaria fazendo nas mãos de ingênuas crianças, você se pergunta. O universo se move de jeitos estranhos à nossa mente limitada, eu te respondo.

Acontece que naquela segunda-feira de Dezembro, Jean-Louis Roubira, também conhecido como Bira, fez uma visita à fábrica de brinquedos ‘É Toys’, em Curitiba, para dar uma palestra motivacional. Para fazer da sua primeira viagem ao Brasil ainda mais inesquecível, Bira levou consigo o primeiro Dixit que existiu e que ele mesmo criou na escrivaninha de seu quarto na França.

Mas Bira não fez essa viagem sozinho. Ele trouxe seu empresário e um estagiário que o acompanharam a todo momento. Então, no fim da palestra, na qual ele mostrou o brinquedo pioneiro para todos e usou lindas frases retiradas do Tumblr para incentivar trabalhadores sul-americanos com mais de trinta anos, o momento chegou.

O telefone do empresário tocou e era sobre um deal importantíssimo. Ele atendeu e deixou o estagiário sozinho. Aplausos. Bira se virou para deixar o jogo aos cuidados do empresário, mas lá só estava o estagiário, então deixou com o estagiário mesmo. Bira retirou-se para o banheiro. Ao lado do estagiário, uma pilha de Dixits comuns esperava para ser distribuída aos funcionários da empresa como brinde. O resto é fácil imaginar. Os funcionários subiram no palco e, na confusão, o primeiro Dixit foi distribuído junto dos outros.

Ao chegar em casa, a mãe de Miguel mal desconfiava do que tinha acontecido, e quando viu seu filho e os amiguinhos brincando, resolveu presenteá-los. As crianças ficaram fascinadas com os desenhos. Elas não sabiam jogar exatamente, mas ainda assim era superdivertido. Julia encontrou uma carta que a chamou mais a atenção, na qual havia um desenho de um carrossel de brinquedo com o céu alaranjado. E a observando, ficou pensando como seria legal poder andar naquele carrossel com seus amigos.

Naquela noite, todas as crianças sonharam com as cartas que mais as chamou atenção. Raquel sonhou que seus dois pais eram seus brincos. Miguel sonhou que empunhava uma espada contra um dragão azul. Pedro sonhou que era um prisioneiro numa cela em Azkaban. E Julia sonhou que ela e os amigos brincavam no carrossel.

Para as crianças, sonho, para os pais, pesadelo. As quatro crianças embarcaram em um sono profundo e só acordaram uma semana depois quando Bira conseguiu as encontrar, recuperar seu jogo, e acordá-las com sua técnica de despertar.

Bira, designer de jogos, também é Bira, psicólogo e estudante da mente humana. Dixit nasceu da percepção do papel da mente na diversão e no entretenimento. De uma epifania da cabeça de Bira, surgiram atmosféricos desenhos que sugerem um determinado estado ao cérebro. Mas seu primeiro jogo não foi aprovado pelo Inmetro francês por induzir de maneira assustadoramente forte as mentes menos preparadas.

Tudo acabou bem em Curitiba. Um empresário quase morto do coração. Um estagiário desempregado. Um Bira com seu Dixit em baixo do braço preso com força. Pais com suas indenizações devidamente pagas. Crianças com seus sonhos interrompidos. O sol baixava enquanto o avião de Bira ascendia na paisagem brasileira. Na cabeça de Julia, ela só conseguia perceber como aquele alaranjado do céu lembrava o alaranjado do seu sonho.

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Gui Moura
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