Contar histórias de máscara: isso é normal

Dorivândia Ribeiro
Clube de Realizadores
7 min readSep 2, 2021

No último Dia das Crianças (12 de outubro), o casal Margarete Neres e Edson Cavalcante percorreu regiões administrativas do Distrito Federal vestidos de personagens de filme infantil para entregar presentes, doces e levar alegria em domicílio para crianças. A ideia foi de uma amiga que estava acostumada a todos os anos reunir os sobrinhos e coleguinhas próximos para comemorar a data e presenteá-los com brinquedos e doces.

Margarete, que é conhecida como Megr nos eventos culturais, se vestiu de Princesa Elsa (Frozen) e Edson pôs uma bermuda, uma camisa colorida, um chapéu e criou um personagem próprio. Com muita animação e criatividade, o casal entregou presentes e doces em seis bairros do DF, das 7h30 às 13h30.

“As crianças ficavam paralisadas quando nos viam. Levamos uns instrumentos, cantamos e encenamos. Não entramos nas casas, ficamos no portão, respeitando o distanciamento e usamos álcool em gel. Fizemos tudo com muita segurança”, ressaltaram.

Enquanto o casal alegrava as crianças no portão, seus filhos e parceiros nas ações voluntárias, Gabriel e a Jéssica, higienizavam os presentes e as cestas de doces.

Sinal do “novo normal”. Como contar histórias para crianças e idosos nesse novo contexto de pandemia e distanciamento social que exigem o uso de máscara e não permitem aglomeração, contato físico, leitura dos lábios e, sobretudo, sentir a emoção no semblante de quem comunica?

A experiência do casal contador de histórias indica a fórmula: reinventar-se a cada dia, ultrapassar barreiras e obstáculos e se doar ainda mais para não deixar de fazer aquilo que ama.

Acostumados a participar de grandes eventos presenciais e de levar alegria em datas especiais, como no Dia das Crianças, neste ano a atuação do casal foi bem diferente e inovadora.

Coração bate forte

Megr diz que ficou muito emocionada com a ação. Em alguns momentos, conta ter sido até difícil cantar, pois a voz quase lhe faltava de tanta emoção.

Em um dos locais visitados, por exemplo, ela foi surpreendida com um abraço pelas costas. Era uma menina grudada em sua cintura; não pensou duas vezes: virou-se e, de forma espontânea, a abraçou. “O coração bateu forte. Só de pensar naquele momento já fico emocionada. Naquele dia, eu ganhei o presente. Foi muito bom!”, lembra a contadora de histórias.

“Nada mais será como antes”, afirmam os dois. Apesar de já estarem bem adaptados ao “novo normal”, eles ainda encontram obstáculos para desenvolver com perfeição aquilo que mais gostam de fazer: contar histórias.

“As histórias são curativas; são o espelho da alma. E a voz do contador conta muito, o olhar, a expressão da boca e do corpo. E, de repente, nos foi tirado este momento com o público. E como você conta história para um público de 150 pessoas com uma máscara?”, questiona Margarete.

“A gente vai ter que inventar outro meio, no tecnológico”, reflete ela.

Pandemia e lives

Com a onda de lives, eventos e reuniões online, o casal foi obrigado a se reinventar, aprender a usar as ferramentas digitais, o computador e o celular para trabalhar e dar continuidade às ações voluntárias e demais projetos.

Antes da covid-19, eles estavam num ritmo intenso de atividades, participando de diversos eventos presenciais e projetos. A pandemia veio e foi como se um balde de água fria tivesse sido jogado em suas cabeças. Eles tiveram que parar tudo, cumprir a quarentena e se proteger.

No início, ficaram bem assustados e perdidos, mas, assim como a maioria das pessoas, aproveitaram o tempo em casa para ler, estudar, aprender sobre as ferramentas digitais e se aperfeiçoarem ainda mais.

Hoje, no vocabulário do casal as palavras de ordem são: Zoom, Google Meet, aulas remotas, online. Com a ajuda dos filhos, eles montaram em casa um mini estúdio para dar as aulas, gravar histórias, realizar lives e reuniões.

Compraram microfones, providenciaram uma televisão grande para trabalharem com mais conforto, além de tecidos coloridos para servir de cenário.

“Eu não gostava de computador. Usava só para jogar paciência. Não gostava de ler texto na tela, sempre preferi o impresso. Agora sou obrigada a usar para tudo que faço. Mas procuro fazer com carinho por entender que agora ele é necessário”, desabafou Megr.

Para Edson, o problema era o celular. “Sempre tive muita resistência em possuir um celular. Aí a pressão aumentou, e tive que comprar um aparelho. Foi renovação total!”, confessou ele, em meio a muitas risadas.

Passar emoção, estar presente online para suprir carências de idosos e crianças por meio da contação. Esse é um grande desafio para os contadores de histórias e outros profissionais da área da cultura.

Aulas da UniSer

Megr e Edson realizam trabalhos voluntários e fazem parte de entidades, como: Associação dos Amigos da História do DF; Associação Viva e Deixe Viver (ONG formada por voluntários contadores de histórias para crianças e adolescentes hospitalizados). São também professores na “Oficina Abracadabra Vamos Ouvir e Contar Histórias”, da Universidade do Envelhecer (UniSer), instituição vinculada à Universidade de Brasília (UnB).

São também agentes da Mala do Livro, projeto da Secretaria de Cultura do DF que tem como objetivo ampliar as possibilidades de acesso ao livro às comunidades mais carentes, por meio de minibibliotecas instaladas em residências para atividades de empréstimo de livros.

Na oficina da UniSer eles já estão inventando alternativas para continuar suprindo as necessidades dos idosas. Diante da nova realidade, procuram formas diferentes de ensinar, já que, presencialmente, eles ofereciam oficinas práticas apoiadas na confecção de material para os alunos levarem para casa e contar histórias para os netos.

“Agora, a gente vai trabalhar mais a vida. Vamos fazer materiais customizados, trabalhar mais com questões da memória, lembrar o que eles faziam na infância e propor coisas diferentes para prender a atenção deles”, revelou Margarete.

Para as aulas não se tornarem monótonas e haver uma interação maior com os alunos, outra alternativa encontrada pelos professores foi a realização das aulas abertas, com a participação online de todos, como explica Edson: “eles já assistem às aulas nas quais a participação é só pelo chat. Na oficina, fazemos diferente: a gente abre espaço para que possam contar suas experiências e reviver suas memórias. Assim eles conseguem interagir mais com a gente, e isso é bom!”.

Sala de aula e o dom da contação

Margarete é pedagoga e atuou como professora durante boa parte da carreira. Devido a um problema de saúde, teve que se afastar da sala de aula.

Antes mesmo da readaptação, ela já tinha a contação de história como um dom: “Eu já contava histórias antes de ser readaptada, acho que já era uma preparação para este momento. Como no meu meio profissional tem sempre um momento em que precisamos deixar o aluno calmo e interagir mais com ele, comecei a contar histórias em sala de aula. Desde então, não parei mais. São mais de 30 anos dando aulas e contado histórias”.

A pedagoga fez diversos cursos pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, órgão a qual é vinculada e também por outras entidades ligadas à cultura.

O amor por histórias é tão grande que ela acabou envolvendo o marido nas contações. Juntos, eles se aperfeiçoaram, foram convidados para comandar oficinas e, em 2018, ganharam o Troféu Baobá, premiação voltada a contadores de histórias, escritores, editoras, movimentos e fundações que, com suas práticas e ações, fortalecem, ampliam e difundem a arte narrativa no Brasil. O troféu é concedido anualmente pelo Centro Cultural Santo Amaro — órgão da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

Da mesma forma que o casal contador de histórias, temos todos que nos reinventar a cada dia para sobreviver a todo esse turbilhão provocado pela pandemia. Sabemos que nada será como antes, mas, como vivemos em um mundo de inovação e novas tecnologias, vamos aproveitar o momento e criar oportunidades para as nossas vidas.

E jamais deixar a história morrer. Afinal, como disse um velho jornalista amigo meu: “o povo que não recupera a sua memória é um povo que não tem condições de entender o presente e, muito menos, defender o futuro”.

Confira aqui a participação do casal no Quintal das Nossas Histórias, live promovida pelo grupo Gwaya Contadores de Histórias, da Universidade Federal de Goiás (UFG)

--

--