Marcha à ré: no Brasil, covid-19 vai aumentar uso do carro
Pandemia impõe a necessidade de repensar alguns paradigmas da mobilidade das grandes cidades
Por Larissa Abrão*
É evidente que o novo coronavírus mudou completamente a forma como a sociedade vive e como as populações se deslocam nas cidades. No cenário da atual pandemia, ao contrário de ser minimizada pelo menor número de pessoas nas ruas, a mobilidade urbana ressaltou desigualdades e escancarou desafios antigos. E tornou urgente o surgimento de novas soluções para evitar uma maior disseminação do vírus.
Apesar disso, há indícios de que o Brasil poderia caminhar exatamente no sentido inverso daquele que aponta a melhoria das condições de deslocamento nas cidades. Pelo menos uma constatação confirma isso: ao promover uma pesquisa que ouviu quase 2 mil pessoas para conhecer os novos hábitos e comportamentos dos brasileiros em razão da pandemia, o Instituto de Estudos Avançados de São Paulo (IEA-USP) mostrou que 58% dos entrevistados pretendem optar pelo carro particular após a flexibilização do isolamento social.
O resultado revela o receio das aglomerações que potencializam o contágio da covid-19 e, sobretudo, tem o potencial de alterar as condições de mobilidade nas cidades e piorar o cenário já deteriorado do trânsito.
O risco é de que o ônibus, considerado até o momento o principal modal entre os brasileiros, segundo o Ibope (2015), tenha sua liderança ameaçada pelo carro.
A preocupação com o contágio é fundada. Uma equipe da Universidade de Wuhan, da China, divulgou um estudo na Revista Nature que constata partículas do vírus presentes no ar por tempo indeterminado em ambientes abertos e fechados.
O carro é retrocesso
O aumento do uso do carro como opção para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, em detrimento do transporte coletivo, teria impactos diretos na mobilidade urbana das cidades não só durante mais também após a pandemia, como o aumento de congestionamentos e emissão de poluentes.
Com mais carros nas ruas, mais gases poluentes são emitidos no ambiente e mais tempo é gasto no deslocamento. Por isso, os especialistas afirmam que a tendência mundial (veja em Fora do pais, ônibus e bike vencem disputa contra carro) é optar por meios de transporte mais sustentáveis, que beneficiem o meio ambiente e a saúde dos seres vivos.
Para se ter ideia, na cidade de São Paulo, os automóveis são responsáveis por 72,6% de emissão diária de Gases de Efeito Estufa (GEE), segundo o Inventário de Emissões Atmosféricas do Transporte Rodoviário de Passageiros no Município de São Paulo, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), que monitora hora a hora as emissões de gases e a qualidade do ar da cidade.
O inventário mostra o quanto carros, motos e ônibus impactam no lançamento de poluentes atmosféricos, segundo os combustíveis utilizados por cada modal:
O obstáculo para reverter esse quadro é que as grandes cidades brasileiras foram planejadas para meios de transporte motorizados. “Temos um histórico de ações de planejamento urbano voltada para o automóvel. Não existe um incentivo ao transporte público, salvo exceções”, afirma o geógrafo Júlio Chiquetto, pesquisador do Programa Cidades Globais, do IEA-USP.
Segundo o pesquisador, além de registrar índices muito menores de emissão de gases poluentes, o transporte público ocupa de 6 a 8 vezes menos espaço do que um carro. Por isso, o ônibus e o metrô surgem como uma opção menos poluente e mais democrática para a população se deslocar pela cidade.
Mas a insegurança gerada pela covid-19 intensificou esse debate, agora com ênfase no mínimo de tempo possível no transporte coletivo, para que não corra tanto risco de exposição ao vírus.
Chiquetto chama atenção a esse ponto. Segundo ele, a mobilidade urbana sem planejamento reforça ainda mais a desigualdade nas cidades, com as ofertas de serviços, trabalho e lazer longe de parte da população que vive na região periférica, o que aumenta o tempo gasto no transporte coletivo. Ouça em detalhes:
Saúde em risco
O aumento do uso de meios de transportes individuais movidos por combustíveis fósseis atinge a saúde da população. Uma pesquisa da Universidade de Harvard indica que a exposição à poluição do ar, no longo prazo, aumenta em 15% a taxa de mortalidade da covid-19.
O estudo investigou mais de 3 mil cidades norte-americanas e descobriu a associação entre as partículas finais da poluição — as chamadas PM 2.5 — e o aumento da taxa de mortalidade de covid-19. Para níveis de comparação, a pesquisa aponta que, em um período de 20 anos, teriam sido poupadas 248 vidas em New York caso a emissão de partículas fosse um micrograma por metro cúbico menor.
Do outro lado do oceano, o estudo produzido pela Universidade Martin Luther de Halle-Wittenberg, da Alemanha, descobriu que 78% das mortes pelo novo coronavírus na Europa ocorreram em regiões muito poluídas. A pesquisa levou em consideração 66 regiões da Itália, Espanha, França e Alemanha, países bastante afetados pela pandemia.
No Brasil, o risco também acontece. Viver em São Paulo é como fumar quatro cigarros por dia, tamanho os índices de poluição, lembrou o engenheiro ambiental e pesquisador do Cidades Globais Luís Fernando Lourenço. Ele alertou ainda sobre um duplo risco: o de a população respirar esses gases poluentes e o de contaminação pelo novo coronavírus. Entenda:
Antes de ser jornalista, *Larissa Abrão (@lari.abrao) sempre foi curiosa e inquieta. As experiências com telejornalismo e projetos voluntários a fizeram acreditar que o melhor de contar histórias é poder compartilhar lugares, pessoas e conversas. Ela participou do projeto Foca Realizador e faz aqui sua estreia no Especial Corona.