PESSOAS, NÃO NÚMEROS!

Regiane Bochichi
Clube de Realizadores
8 min readAug 31, 2021

O aumento de casos de mortes de coronavírus acaba banalizando as histórias de cada vítima e dificultando os rituais necessários para o processo de luto.

Em 5 de maio, o apresentador do Jornal Nacional, William Bonner, escancarava para a sociedade que, com o passar dos dias, as pessoas iam “se acostumando” com os números de morte causadas pelo novo coronavírus. Era como se a população, em geral, se anestesiasse e apenas os parentes e amigos mais próximos das vítimas vivessem esse momento trágico. Em seguida, ele mostrou uma reportagem de como a morte de um único morador pode impactar toda uma comunidade. Era Joaquim de Paula Reis, habitante da pacata cidade mineira de Belo Vale.

Como Joaquim, milhares e milhares de brasileiros estão morrendo sem ter um enterro digno e sem que os familiares tenham direito à ritualização necessária para absorver o luto.

Segundo Ana Claudia Quintana Arantes, médica geriátrica, especialista em cuidados paliativos e terapia da dor, para cada pessoa que morre existem pelo menos dez enlutados. Em entrevista à BBC News Brasil, assinala que “a ritualização, como o funeral, faz parte de uma elaboração da nova etapa da pessoa que fica. Cada cultura vai ter seu ritual. Quando você vê o corpo, enterra, chora, faz a missa de sétimo dia, as rezas, isso estrutura o processo. É como se você fosse fazer uma trilha, e tem uma sinalização. A ritualização dá segurança. Sem essa ritualização, a emoção da perda é arrebatadora”.

Para tentar suprir essa falta e também reverter a lógica fria de como as mortes estão sendo banalizadas, um grupo de artistas e jornalistas criou um memorial on-line chamado Inumeráveis. “O site nasce do incômodo em perceber que nas tragédias humanitárias pela qual a humanidade passa transformamos as vidas perdidas apenas em números e estatísticas. Pandemias, guerras, genocídios, desastres recentes como Brumadinho. Não valorizamos, não registramos a vida, a história de cada única pessoa que todos nós perdemos”, explica Rogério Oliveira, empreendedor social e um dos idealizadores do projeto. “Hoje, temos tecnologia e um sistema distribuído que pode colaborar para termos a ambição de registrar 100% das histórias, de cada pessoa.”

A ideia do Inumeráveis é montar uma rede voluntária de jornalistas, estudantes, escritores e contadores de histórias, de Norte a Sul do país, para narrar as histórias de forma sensível, pessoal e respeitosa às peculiaridades da vida de cada vítima, estimulando um processo reconfortante.

Rayane Querubina e o marido Jonathan embarcaram nesta missão há menos de um mês. Ela é responsável pelo conteúdo e ele, pela programação, por tornar o site escalonável, funcional e definitivamente uma obra de arte — note a delicadeza da mudança de cada galho quando você dá reload na página.

Ela conta que o maior desafio é criar uma narrativa “imparcial e poética” para cada história que recebe. O processo é bem simples: quem quer homenagear uma vítima pode escrever um texto, que recebe apenas uma revisão gramatical e responder um questionário com perguntas predefinidas. O jornalista escreve a homenagem ou grava um áudio que é tratado da mesmo modo pela equipe de voluntários. “Nossa preocupação é reumanizar as pessoas. Será que estamos genuinamente incomodados com as estatísticas e as vidas?”, pergunta Rayane. “Nosso trabalho é contar histórias de cada vítima sem fatos grandiosos ou muitos adjetivos. Na maioria das vezes, a beleza está em coisas miúdas. Queremos mostrar histórias peculiares, que apresentem o falecido como a pessoa única que foi.”

Especialista em storytelling, Bruno Scartozzoni explica que, de modo geral, contar uma história, real ou ficcional, é estruturar fatos de uma forma específica. Quando um biógrafo vai contar a história de uma personalidade, por exemplo, uma parte de seu trabalho é encaixar os fatos coletados nessa estrutura. Na sua opinião, ao preferir o caminho da leveza, do carinho da poesia, os textos dos Inumeráveis não se encaixam exatamente na estrutura de uma história clássica. “Pode-se dizer que, no máximo, são características pinçadas de cada personagem. Mas, então, onde está a história? A história, nesse caso, está no contexto. O site é um memorial dedicado a uma guerra que vivemos em tempo real. O personagem é a sociedade como um todo, o desafio são os problemas que a pandemia nos impõe (dos mais estruturais aos psicológicos) e o desejo é atravessar essa tormenta sãos e salvos”, analisa o professor e consultor. “Cada uma daquelas frases representa um personagem dessa guerra, que infelizmente não chegou lá. E a beleza de trazer características comuns, pouco grandiosas, é que qualquer um é capaz de se identificar com eles, ou relacionar com pessoas conhecidas. O site é lindo!”, diz.

“Todos os dias ouvimos um novo número de pessoas que morreram vítimas do coronavírus no Brasil. Só que números não penetram o coração como histórias. Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”, enfatiza Edson Pavoni, artista plástico que pretende criar um memorial físico com os depoimentos colhidos.

No domingo, 10 de maio, “O Globo” estampou trechos destes tributos na capa e em duas páginas internas. O jornal vai continuar publicando textos em suas edições diárias. Naquela mesma noite, no Fantástico, atores leram alguns deles. Acompanhe neste link.

“Foi emocionante ver os rostos e os textos interpretados. É uma honra para mim, ajudar as famílias a viver esse processo de luto e dor”, comenta a editora. A exposição na grande mídia e também por posts de artistas como Caetano Veloso aumentaram a demanda e, evidentemente, foram necessários ajustes na equipe para imprimir velocidade e dar vazão à publicação dos textos levando em conta a ansiedade dos famílias. Hoje, esse prazo é de no máximo 48 horas.

Um dos homenageados foi o músico Aldir Blanc, que morreu aos 73 anos. Seu parceiro de composições João Bosco e o pesquisador Giovani Pozzo Junior fizeram a mensagem. “Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha”, escreveu o cantor.

Gurufin

E foi exatamente cantando, dançando, fazendo poesias e lembrando histórias de Aldir Blanc que amigos e familiares fizeram on-line para ele um gurufim, nome dado aos velórios de sambistas cariocas com muita música e bebida. No meio do isolamento social foi feito por meio de um live no Instagram. Durante mais de 9 horas, reuniu mais de 900 participantes de Guapirimirim, Paris, Lisboa, Rio, Lima e São Paulo em torno de uma roda de samba no perfil do Bar do Bip Bip, tradicional reduto de músicos localizado em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, que Aldir frequentava.

https://youtu.be/UOzQILlUjrs?list=PL_5GvqBN6fnJRq7-FvZRVfpfReFX9VfFJ

“A ideia era fazer um pouco do que fazíamos há sete anos, na rua, cantando por horas a obra do Aldir, que tinha amor pelo Bip e pelo Alfredinho (fundador do local, morto em 2019). Estávamos inquietos e precisamos desabafar as emoções para nos despedir dele”, afirmou, no Instagram, o violonista Tiago Prata, que organizou a despedida. Além da música, teve muito choro.

Chorar coletivamente em uma reunião virtual foi também a maneira que amigos e familiares encontraram para extravasar a morte do jornalista Nirlando Beirão, que morreu no dia 30 de abril, aos 71 anos, vítima de esclerose lateral amiotrófica (ELA). O encontro foi relatado pelo enteado e escritor, Antônio Prata, em uma crônica no jornal “Folha de São Paulo”. Ele escreveu: “na última quinta, porém, em vez de uma missa de sétimo dia, fizemos um Zoom com família e amigos próximos. Lembramos de histórias bonitas. Cantamos ‘Breve Amore’, rock italiano dos anos 60. Assistimos a um clipe com fotos da vida toda ao som de ‘Here Comes the Sun’ na voz de Nina Simone. Vimos um vídeo nosso, no final da festa de 69 anos do Nirlando, cantando ‘Eu Sei Que Vou Te Amar’. Brindamos remotamente. Choramos copiosamente.”

Segundo Scartozzoni, há estudos que mostram que contar a história de uma pessoa que viveu um problema é muito mais eficiente para conscientizar um público do que apresentar grandes números. “Se me falam que 10.000 passam fome e eu não conheço nenhuma dessas crianças, posso até ter alguma empatia, mas de forma limitada.” E complementa: “É difícil se relacionar com números. Agora, se me contam a história de uma dessas crianças, com nome e com algumas características, eu me sinto muito mais próximo daquela vítima e, portanto, mais consciente do problema”.

Histórias lindas

A médica Ana Claudia Arantes acabou de lançar “Histórias lindas de morrer” e, como o nome diz, também traz essa preocupação em reverenciar os que morreram de maneira correta, deixando de lado a estatística.

Para quem está passando por um processo de luto, seja por aqueles que morrem de covid-19 ou por outras doenças e não puderam participar da cerimônia de despedida, o que vale é saber que não existe um jeito ideal de lidar com essas emoções. Cada um vai ter um estilo próprio para enfrentar a perda, explica em entrevista ao canal do YouTube da Editora Sextante. É importante saber que “a vida inteira daquela pessoa coube na sua vida e, então, não pode só a morte ocupar sua memória”. Para superar este luto, ela ajuda a estabelecer vínculos simbólicos. “A música que tem sido usada para aliviar essa dor não pode ser aquela que a pessoa gostava e que te faria chorar. A mudança é perguntar que música o ente querido gostaria de ouvir hoje, e escutar com ele: essa é uma nova experiência, baseada na escolha que faria no presente, e não no passado.”

Seu primeiro livro “A morte é um dia que vale a pena viver” nasceu de um TED de 2012 que sempre vale a pena rever:

https://youtu.be/ep354ZXKBEs

Com um curso de aperfeiçoamento e intervenção em luto, a doutora prevê que a humanidade passará por três tipos de luto por causa da pandemia. Além do luto real, das perdas objetivas, acrescenta o luto antecipatório — a percepção de que a morte está chegando. “Além disso, vamos ter um luto pela falta de consciência. Muitas pessoas vão se arrepender de não ter tido cuidado antes e vão pensar ‘eu poderia ter ficado em casa, poderia ter convencido as pessoas a ficarem em casa’”, afirma. “Haverá arrependimento coletivo também.”

Com essa crise e sem o processo ideal de enlutamento, estamos todos os dias como a clássica canção de Blanc e Bosco: “O Bêbado e a Equilibrista”:

Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

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Regiane Bochichi
Clube de Realizadores

Profissional de comunicação e transmídia com sólida experiência em ações de marketing e conteúdo jornalístico, adquirida em mais de 30 anos de atuação em empres