Tia, depois do ‘colonavílus’ eu posso entrar na sua sala?

Nathalia Barboza
Clube de Realizadores
8 min readSep 2, 2021

O maior pecado da pandemia para as crianças da educação infantil e seus professores tem sido o aperto do coração que dá com a distância social

Ouvir a mensagem que a menina Jade Fernandes Stange, de 3 anos, enviou para a professora de ballet dá a dimensão da força que tem um abraço. O encantamento que há na interação diária entre as “tias” de educação infantil e os pequenos. O vínculo afetivo que se forma no convívio entre os dois.

Isso é o que mais entristece os envolvidos. “A Jade tem loucura pela Aninha. A turma do ballet era muito cheia e teve de ser dividida. Ela foi para a outra professora, mas sempre pediu a Aninha. Desde essa separação, ela ficou com vontade de mandar um recado. Entrei no WhatsApp e enviei o áudio e uma cartinha”, conta Karina Machado Fernandes, mãe de Jade.

A resposta foi imediata. “Elas sempre foram meu combustível. Chegar na escola e ouvir suas vozinhas gritando ‘Aninha’ e sentir o abraço apertado e sincero dessas pequenas bailarinas sempre me aqueceram o coração. Mas veio a pandemia, e o tempo longe delas se estendeu muito além de um período de férias. A saudade é gigante. Principalmente porque as dificuldades de adaptação dos pais em relação à nova rotina têm complicado muito a comunicação entre elas e nós, professores. Embora o trabalho continue sendo feito através de videoaulas, não se tem muito retorno. Não tenho notícias de muitas das minhas bailarinas desde o início da quarentena. Por isso, quando chega um recadinho, uma foto, um vídeo, vem novamente aquele calorzinho no coração; e fica impossível segurar as lágrimas. Não vejo a hora de poder abraçá-las novamente”, confessa Ana Lucia Barboza, professora de dança que trabalha há 25 anos com crianças a partir dos 3 anos lecionando baby class.

Ana Lucia e algumas das suas “vozinhas” que gritam “tia”

Jade ficou feliz com a resposta de Aninha. “Ela colocou as duas mãos no queixo e ficou ouvindo com uma cara emocionada!”, lembra a mãe, que mandou mais um áudio da filha:

“Tenho outra menina de 9 anos, e ela não está tão ‘pirada’ quanto a Jade, porque já entende a situação. A de 3 anos, por mais que queira entender, cada diz pede uma viagem e dita listas de coisas que quer fazer quando acabar o ‘colocavílus’”, comenta a Karina.

Segundo ela, lidar com a filha fora da escola requer muita energia, porque Jade não está com o menor interesse no vídeo que a escolinha regular envia todo dia. Mas a mãe não se preocupa com isso. “Geralmente é contação de história. Mas ela simplesmente não quer ver. E não insisto. Como a Jade não para quieta, montei uma mesinha de desenho e ela brinca muito. Vou mudando a mesa de lugar todo dia. E faço caixas de livros. Ela vê TV pulando, nas costas do sofá”, conta a mãe.

Valores e conflitos

Como profissional que atua em uma pequena escola com um projeto de educação infantil livre, democrática e brincante, a pedagoga Karina Braga, formada pela USP, conta que, para ela, seu conflito pessoal em relação à prática pedagógica que se impôs na pandemia “só não é maior porque a escola onde atuo continua preconizando o brincar, o respeito à criança e ao tempo dela como vertentes principais ao se pensar qualquer trabalho, mesmo neste cenário atípico”.

Karina é professora de Educação Infantil em O Quintal Escola Espaço para Ser e Brincar, em São Paulo. “Esses são valores muito importantes para mim. E existe lá também uma busca por estreitar os laços afetivos com as crianças e suas famílias, tentando sempre estabelecer o olhar humano e sensível a este momento, que é novo para todos, e em uma tentativa de ajuda mútua, que é a melhor forma de passarmos juntos por tudo”, diz.

Karina Braga e alunos aproveitam a área externa da escolinha

“O maior desafio tem sido conciliar a minha formação e o que eu penso sobre educação infantil, com o esforço em refletir e fazer uma educação infantil a distância em tempos em que o contato e a interação são prejudiciais à saúde”, fala. “Fico em conflito e sinto que qualquer proposta pensada e explicada às famílias, por maior que sejam os esforços entre ambas as partes, não substituirá o contato direto do profissional da educação com a criança em um ambiente educativo, em que as crianças interagem com seus pares”, completa.

“Não se trata de levar a escola para dentro de casa. Não é a mesma coisa. E não é para ser mesmo. Temos procurado tranquilizar os pais e, se preciso, temos um plano de ação para recuperar as crianças que, porventura, tenham ficado defasadas na aprendizagem. Esta parada, a meu ver, não é de fato um prejuízo para as crianças, que ainda têm muito tempo dentro da escola”, afirma Aline Lincoln Silveira, diretora da Viverde Socorro, no interior de São Paulo.

A distância social trouxe um imenso desafio para os professores da educação infantil da Viverde. A escola desenvolve a abordagem pedagógica Reggio Emília, que supõe uma criança potente e de direitos e não de necessidades, valorizando o que a criança faz e com aquilo que é curioso para ela, evitando todo tipo de trabalho pronto, usando muitos recursos artísticos de música e dança. Por conta disso, a ferramenta dos professores é a escuta ativa, muito trabalhada nas observações que surgem no dia a dia das crianças e transformada em intenção pedagógica.

A partir de uma ideia criada coletivamente pelos professores, a Viverde decidiu enviar para os pais um semanário com propostas diárias de experiências de aprendizagem que poderiam ser potentes dentro de casa. Nele, há uma proposta de experiência por dia, que é como acontece na escola, do maternal até o pré-primário. No maternal, há ainda tem uma live por semana, com finalidade social apenas. Já no jardim e no pré (para crianças de 4 e 5 anos), as professoras dão uma aula on-line por dia.

“N’O Quintal, a escolha foi fazer diariamente uma rápida ‘roda’ virtual com as crianças e suas famílias, apenas para darmos um ‘oi’ e conversar um pouquinho. “Ainda assim, sinto que há um certo distanciamento e uma dificuldade de acessar a criança e sua participação, justamente por ser virtual. Mas ter esse momento com elas se faz necessário para manter o vínculo já construído anteriormente”, afirma Karina.

Anemizar a ansiedade

Apesar do bom ambiente de trabalho, a quarentena pesa. “Tenho me possibilitado viver um dia de cada vez para anemizar a ansiedade e acompanhado as notícias apenas o suficiente para me manter informada”, revela Karina Braga. Ela conta que organiza sua rotina de forma que, dentro daquilo que consegue estabelecer entre o trabalho remoto com a escola e as demandas da casa, fica um pouco longe das telas e se dar um tempo, sem a pressão de ter de produzir algo.

“Estar em uma escola que acolhe as dificuldades individuais de cada um e tenta unir forças da equipe para fazer o que é possível ser feito em parceria com as famílias faz com que as minhas angústias pessoais e profissionais sejam um pouco menores. Talvez se eu estivesse em uma escola com uma vertente mais tradicional e/ou como professora de ensino fundamental, os meus conflitos internos seriam muito maiores: não sei se eu conseguiria lidar com o fato de, além de sustentar o ritmo acelerado de tarefas, ainda ter que manter as avaliações como se tudo estivesse ‘normal’”, pondera.

Segundo ela, esse processo tem a tornado mais resiliente consigo mesma. “O meu trabalho não sairá do jeito que eu planejei e do jeito que eu colocaria em ação com a parceria das crianças em um ambiente educativo, e está tudo bem, dadas as circunstâncias.”

“No começo, me senti sendo levada, sem escolha. Fiquei bastante angustiada e perdida”, revela Aline Silveira. “No meio disso, resolvi me apoiar nos pontos positivos, até porque os negativos gritam do seu lado. E fui encontrando. Vejo agora o quanto a gente aprendeu e se descobre capaz de enfrentar um cenário assim.”

Esforço em fazer o possível

Karina percebe que, dadas as atuais circunstâncias, há uma tentativa de manter minimamente o trabalho com as crianças e adolescentes, seja em escolas que teriam condições de se autogerirem por algum tempo, seja, principalmente, nas menores que vivenciam o risco de terem que fechar em decorrência da atual situação. “O que vejo, nessas escolas pequenas, que inclusive se empenham em realizar um trabalho transformador na educação, é um esforço em se fazer o possível para subsistência delas próprias, dos seus profissionais e de seus projetos, com a equipe tentando articular da melhor forma o que se dá para fazer em tempos como esses”, reconhece.

E lembra: “Não existe educação infantil a distância, e não estudei para atuar em um contexto assim. Como muitos, não me sinto preparada. Até porque, se mesmo as discussões sobre um currículo parcial na modalidade EaD para o ensino médio já são permeadas de críticas e ressalvas justamente por conta da importância do contato presencial, do aprender a aprender que só se dá na interação, imagine nas etapas anteriores da educação básica! Não há nem o que se considerar. E o que estamos vivendo é estritamente em caráter excepcional, e esperamos que seja só nesse momento mesmo”.

Devido valor

Ela vê que a educação e a escola podem ser muito mais valorizadas no pós-pandemia, sobretudo pelas famílias que estão hoje com as crianças em casa precisando conciliar seus próprios trabalhos com um acompanhamento mais afinado aos estudos dos seus filhos. “Além de ser difícil seguir com todas as demandas, inclusive da casa, não é nada fácil fazer algo para o qual não há preparo profissional, por isso as escolas nesse momento também precisam agir com parcimônia quanto ao que se exige das famílias a partir das atividades propostas”, garante.

E aposta que será dada maior importância às relações e às interações promovidas pela escola. “Também penso que deverá haver uma maior sensibilização ao tempo do brincar e o brincar na natureza. Que as crianças tenham efetivamente tempo nas escolas e no dia a dia com suas famílias para brincarem livremente sem a rígida regulação da rotina tão presente em tantos contextos”, pondera.

Cenas da educação infantil na Viverde

Para ela, por mais interessante que esteja sendo o uso da tecnologia a favor do ensino, o porvir trará maior relevância à educação presencial, ao aprender na interação com o outro. “No atual cenário, querendo ou não, as relações com as crianças se tornam mais frágeis, pois já não temos o tempo que tínhamos ao lado delas no dia a dia, e o esforço em manter minimamente o contato se dá na tentativa de mantermos o vínculo já construído previamente no início do ano”, fala.

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