Vamos continuar generosos?
Uma onda de solidariedade tomou contou do Brasil e ajudou milhares de pessoas a atravessarem a crise causada pela pandemia. Agora, as doações começam a minguar.
Em agosto, quando a pandemia começava a dar os sinais de estabilidade, ainda que com índices altíssimos de morte e contaminação, o jornalista Fábio Ramalho fez um desabafo nos stories do seu perfil no Instagram. Ele observou que um post seu com máscara havia atraído mais de 2 mil likes e que, dois dias depois, o de uma criança também de máscara pedindo doações para o “Operação do Bem” não havia rendido nem 100. Acendeu-se, ali, um primeiro sinal de que a “euforia” das doações, vista nos primeiros meses da crise sanitária, estava arrefecendo.
E os números estão aí para comprovar. O Monitor das Doações, criado pela ABCR — Associação Brasileira dos Captadores de Recursos para acompanhar o movimento de solidariedade, registrou um recorde na história recente: atingiu quase R$ 6,5 bilhões até a data de hoje, com um total de 542.044 doadores, o equivalente à população da cidade de Juiz de Fora (MG), com picos em abril e maio, para chegar em setembro com menos de 34 milhões.
Ramalho sente na pele, no dia a dia do “Operação do Bem”, projeto social virtual de aglutinação de ONGs, criado em 2015 a partir do quadro “Chamada de Esperança” que apresentava na TV Record, no extinto “Programa da Tarde”.
No primeiro mês, houve uma paralisação das doações. Em abril, reestabeleceu-se o fluxo e foi possível endereçar as novas necessidades das 9 entidades que ajuda.
“De um lado, acabou a mobilização que tínhamos de grupos de trabalho, faculdades, amigos que nos ajudavam periodicamente”, comenta. “De outro [lado], as crianças e as famílias atendidas perderam renda e tivemos que supri-las com cestas básicas e produtos de higiene que não estavam em nosso radar.”
Nos meses seguintes, Ramalho teve de ‘rebolar’ para atender a todos, principalmente porque quem ajudava também começou a temer em ficar sem dinheiro e evitou por a mão no bolso. Neste Dia das Crianças, a resistência começou a se quebrar. Ele espera um cenário melhor para o fim do ano.
Quem também já notou uma diminuição nas doações foi a Brazil Foundation. Especializada em filantropia estratégica, teve que mudar o seu foco para ações de caráter humanitário a fim de abastecer 58 entidades em 18 Estados brasileiros com cestas básicas e produtos de higiene. “Com a chegada do novo coronavírus, tivemos um boom de empresas e pessoas físicas nos procurando. Nos organizamos para atender emergencialmente as ONGs que tinham capacidade para efetiva e eficientemente fazer as entregas”, conta a CEO da fundação, Rebecca Tavares. “Vários fundos foram estabelecidos com a finalidade específica de amenizar os efeitos da covid-19. Agora, sentimos um assentamento deste movimento”, completa.
Para se ter uma ideia, a BF recolheu mais de 2 milhões de dólares que socorreram 138 mil pessoas. No balanço do biênio 2018/2019, o montante havia sido de 19,4 milhões de reais. Ao longo de 2019, 115 projetos foram finalizados e beneficiaram diretamente mais de 8 mil pessoas. Isso tudo sem contar com o carro-chefe das campanhas, que são os bailes de gala realizados, anualmente, em Nova York e São Paulo.
Este ano, o evento foi substituído por uma live beneficente de mais de quatro horas de duração, com o tema “Reset Our Vision”. A apresentação ficou sob responsabilidade do casal Otaviano Costa e Flávia Alessandra. O show principal foi de Preta Gil. Artistas como Cauã Reymond, Daniela Mercury, Sheron Menezzes, Malu Mader, Marisa Orth, Juliana Paes, Sabrina Sato e Ana Flavia Cavalcanti, gravaram mensagens reforçando o papel fundamental da filantropia.
Leona Forman, fundadora da Brazil Foundation, foi a homenageada por sua trajetória à frente da fundação. Teve, ainda, sempre ela: a top model Gisele Bündchen, reconhecida pela criação do Fundo Luz Alliance, que arrecadou cerca de R$ 3,9 milhões e financiou 22 projetos.
Live = alívio
Aliás, nestes seis meses, as lives se popularizam e se tornaram ao mesmo tempo um alívio psicológico frente ao isolamento, uma forma de obter recursos e, por que não, de servir como um movimento de resistência da cultura cujas atividades foram paralisadas totalmente e só agora começam a retornar (leia aqui matéria de Gaby de Saboya sobre o setor de cultura).
Foram realizadas 120 lives que, até julho, coletaram R$ 17,5 milhões. O Fome de Música foi responsável por 74 delas, e os valores foram entregues aos 2.398 Rotary Clubs espalhados por todo Brasil e ao Mesa Brasil Sesc, projeto que atende 1.424.479 pessoas todos os dias.
Porta aberta à doação
Quem também teve que recorrer ao formato digital foi o Doar Fashion. O evento de moda 100% beneficente completou 10 anos sem poder realizar, este ano, o bazar que arrecada donativos para atender 21 instituições. Desde de sua criação, o montante auferido é de mais de 4 milhões de reais. Na edição de 2019, amealhou R$ 979 mil com a venda de 17 mil peças em dois dias de evento no Jockey Club do Rio de Janeiro. Com isso, cada entidade pode receber R$ 35 mil. Em 2020, só foi possível repassar R$ 10 mil.
“O Doar Fashion era uma ajuda misturada com consumo. Recebemos 4 mil pessoas o ano passado. Tem uma química ali. Um vai comprando, vai empolgando o outro e ainda, você pensa que está fazendo o bem”, explica uma das fundadoras, a estilista Daniella Martins. “Nós, como tanta gente, tivemos que nos reinventar e criar opções na internet para tentar manter pelo menos uma porta de donativos aberta.”
O coletivo passou a “vender” experiências como aulas de culinária, maquiagem, filosofia, arranjos florais, entre outros, e se associou ao brechó Repassa para dar vazão às roupas e acessórios que sempre fizeram o sucesso do projeto. “Estamos bem longe do que a gente conseguia, mas estamos fazendo a nossa parte; tudo é importante neste momento”, acrescenta Daniella.
O brasileiro é, afinal, generoso?
Para a psiquiatra e psicanalista Maria Francisca Mauro, mestre pela UFRJ, a generosidade não é uma característica genuína do povo brasileiro. “Quando pensamos na generosidade como um marcador de bondade de se doar para outro; ou mesmo de realizar algo em sacrifício a si próprio para beneficiar o outro, não vejo isso no Brasil”, analisa.
“Conseguimos conviver com a desigualdade social de uma forma estrutural sem que isso nos cause profundos incômodos. Alguns dias, alguns acordam mais sensíveis e realizam algumas doações ou fazem de forma isolada alguma ação para se aliviarem de um cenário desconfortante. Entretanto, isto de forma muito limitada se transforma em algo mais estruturado que realmente tenha uma inserção ou impacto mais em longo prazo.”
O que se viu na quarentena, em termos comportamentais, foi a divisão em três grupos:
- aqueles que sempre fizeram caridade, se empenharam ainda mais;
- aqueles que foram impelidos a fazer algo para poderem de alguma forma se sentirem participantes de um sentimento de benevolência e não se sentirem tão incomodadas pela desigualdade;
- e aqueles que não foram tocados de jeito nenhum, seja por problemas financeiros ou mesmo por falta de empatia.
De acordo com o Brasil Giving Report 2020, produzido pela CAF Global Alliance, representada no país pelo IDIS — Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, se sentir bem é a justificativa mais comum citada pelos brasileiros para doar para causas beneficentes. Metade (52%) dos entrevistados afirmaram esta ser sua motivação.
Se sentir bem é a justificativa mais comum citada pelos brasileiros para doar para causas beneficentes
Os brasileiros mostram-se agora mais propensos que nos anos anteriores a citar que “isso os ajuda a se tornar uma pessoa melhor” como motivação para doar (37%, contra 32%, em 2018, e 29%, em 2017).
“Pudemos observar uma forma de solidariedade, da sociedade civil, especialmente empresas, que identificaram a insuficiência do Estado e passaram a tentar diminuir o impacto que a crise sanitária e econômica determinariam sobre todos”, comenta a doutora Maria Francisca.
“Podemos até lançar um olhar sobre os últimos meses e admirar a capacidade de mobilização de uma grande parte da população, mas pode se observar que esta já não está tão ativa. Voltamos ao nosso estado de cuidado para com os ‘nossos’, sendo que estes ‘nossos’ não são um coletivo amplo, mas sim quem nos cerca de forma mais direta.”
Terceiro setor
O ano de 2020 será lembrado como aquele em que as empresas acordaram para o terceiro setor. De acordo com o estudo da ABCR, os empresários contribuíram com R$ 4,8 bilhões, ou 82% do total, sendo que o setor financeiro foi o protagonista. Sozinho, o Banco Itaú doou R$ 1,247 bilhão, o que corresponde 19% do total.
Uma das cinco campanhas que mais arrecadou foi o União Rio. Em cinco meses de atuação, foram mais de R$ 74 milhões recebidos em doações e, deste total, R$ 1,5 milhão está sendo investido em reformas no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), popularmente conhecido como Hospital do Fundão.
Além disso, o movimento investiu R$ 10 milhões na ativação de 200 leitos no Hospital de Campanha Parque dos Atletas, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto D’Or. Na frente comunitária, com gestão do Instituto Phi, do Banco da Providência e Instituto Ekloos, superou a marca de 3,7 mil toneladas de alimentos, além de mais de 1,1 milhão de litros de itens de higiene e limpeza distribuídos a mais de 285 mil famílias em comunidades da região metropolitana do Rio de Janeiro.
A campanha teve um altíssimo engajamento de empresas que confiaram na equipe que está à frente do projeto. “A ideia nasceu de forma orgânica em um grupo de WhatsApp e cresceu rapidamente”, relembra Marcela Coelho, uma das mentoras. “Nós fazemos a ponte de quem queria ajudar e quem estava precisando. Agora, estamos reavaliando nosso papel para entender como continuaremos relevantes, mesmo sabendo que os recursos serão mais escassos”.
O empenho das companhias rendeu até um quadro no Jornal Nacional quebrando uma tradição da Rede Globo de não misturar marcas com o jornalismo. Desde de abril, o quadro Solidariedade S.A. é exibido diariamente no telejornal. São dois minutos de duração que valorizam as ações que as empresas estão fazendo para ajudar no combate ao novo coronavírus.
Em nota, a emissora defende que “a pandemia provocou uma infinidade de ações solidárias no Brasil: de cidadãos e de empresas. Os exemplos de cidadãos solidários, o Jornal Nacional já mostrava quase todo dia, com nome e sobrenome. Já as iniciativas das empresas eram apresentadas sem mencionar as marcas. O Jornal Nacional mudou isso, porque a TV Globo acredita que, para superar um desafio tão grande, é importante mostrar o que muitas empresas e empresários têm feito nesse período”.
A onda de solidariedade tem que continuar
Se durante a fase aguda da pandemia a população mais vulnerável foi de alguma forma atendida, conforme mostra pesquisa do Instituto Locomotiva e da CUFA — Central Única da Favelas, o problema não se encerra tão facilmente. A realidade ainda é cruel e a crise econômica deve se estender por anos como efeito da quarentena.
Pobreza e solidariedade
Publicado em junho, um relatório conjunto da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) mostra que a população em condição de extrema pobreza na América Latina e Caribe pode chegar a 83,4 milhões de pessoas em 2020, gerando aumento significativo nos níveis de fome.
Segundo o documento, após sete anos de baixo crescimento, poderá ocorrer nessas áreas a maior queda do PIB regional em um século (-5,3%), elevando em 16 milhões o número de pessoas em extrema pobreza na comparação com o ano anterior. Em dez ações sugeridas para minimizar este quadro, uma delas é continuar apoiando as iniciativas de assistência alimentar das organizações da sociedade civil.
“Não apenas os efeitos da crise gerada pela covid-19 ainda devem continuar por mais tempo, como temos um país continental, cuja população vulnerável e os problemas estruturais ainda são imensos e precisam do olhar atento de toda a sociedade civil e do próprio governo”, alerta a presidente da ABCR, Márcia Woods.
De acordo com a CUFA, o Brasil tem 13,6 milhões de pessoas vivendo em comunidades. Se fosse um Estado, seria o quinto maior do País, atrás apenas de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia. E mesmo entre eles, generosidade não falta: 63% dos favelados fizeram algum tipo de doação durante a pandemia.
Os doadores mais ricos (aqueles com uma renda anual superior a R$ 100 mil) são os mais propensos a afirmarem “perceber que podem fazer a diferença” (56%). Segundo o estudo do IDIS, esses doadores também se mostraram mais inclinados que outros a concordar que “todos precisam ajudar a resolver problemas sociais” (50%).
“Temos de continuar nosso trabalho de implantar definitivamente uma cultura de filantropia no Brasil”, enfatiza Rebecca. “A Brazil Foundation tem se empenhado muito neste sentido, usado sempre como exemplo a atitude dos americanos”. Um dos motivos apontados por ela é a isenção de impostos para doadores que é bastante usada nos Estados Unidos.
Aqui, vale lembrar que se pode deduzir 3% do Imposto de Renda de Pessoas Físicas para fundos estatais de Cultura, Esporte, Assistência Social (à Criança, Adolescente e Idoso) e Saúde. Segundo dados da Receita, menos de 3% dos contribuintes fazem uso deste desconto, por pura falta de informação.
Para a psicanalista Maria Francisca Mauro, também falta educação que reforce o conceito de generosidade desde a infância. “Isso deve ser parte do processo de educação das crianças, permitindo que estas tenham mais empatia e consciência social”, aponta. Juntamente, ela sugere a ampliação da discussão na sociedade sobre o compromisso coletivo com a generosidade. Mas admite: “é uma quimera que, para não ser propagada como uma ufania, não pode sair do nosso debate diário do que cada gesto egoísta implica consequências para o todo. Será preciso persistir e muito para que esta pauta não fique como um passado distópico”.
Ser generoso deve ser uma das lições aprendidas e deve fazer parte, efetivamente, do “novo normal”.