Cidadania e Espiritismo

Daniel Soares
Clube dos Escritores Espíritas
5 min readFeb 17, 2017

Quando o Espírito da Verdade convocou Kardec à codificação que daria origem ao Espiritismo, deixou claro que a nova doutrina tinha como objetivo, principalmente, oferecer aos encarnados um acalento para suas incessantes dores, além de lhes disponibilizar ferramentas poderosas para que realizassem a reforma de si mesmos. Jamais ele, e nem os espíritos que participaram do processo de gestação da terceira revelação, sequer deram a entender que o Espiritismo estabeleceria uma nova ordem social ou, como supõem alguns, nos sugeriria a escolha de posicionamentos político e ideológico específicos.

Portanto, vejo que a tentativa de apropriação da doutrina Espírita, seja por pessoas ou instituições, no intuito de defender seus pontos de vista ideológico-partidários é um fenômeno bastante problemático. Um desvio radical do objetivo inicial dos espíritos que poderíamos comparar, inclusive, com a distorção que os ensinamentos do próprio Cristo sofreram na interpretação convenientemente torta da igreja católica na idade média. Dizer que o Espiritismo se posiciona neste ou naquele espectro do quadro político equivale a dizer que a doutrina abrange determinado número de pessoas e exclui outras. E, na realidade, sua proposta expõe justamente um objetivo inverso a este. Sua natureza é universalizante justamente para que possa alcançar a todos os corações, tanto os embrutecidos quanto os elevados.

Entretanto, nada impede que os Espíritas (pessoas físicas e jurídicas) divulguem suas opiniões referentes aos temas políticos e sociais da atualidade. Afinal, não estarão trazendo nenhum prejuízo para o Espiritismo em si desde que deixem claro o fato de que se posicionam enquanto individualidade, e não em nome da Doutrina. A própria ABPE, recentemente, tomou partido pela manutenção das ferramentas que compõem a democracia representativa, mas o fez enquanto instituição espírita, e não em nome da doutrina. O grupo em questão está plenamente consciente de que a filosofia espírita não nos leva, fatalmente, à conclusão de que a democracia é o melhor regime governamental possível, até porque todos os sistemas até hoje estabelecidos, cedo ou tarde, ruíram. É lugar comum entre os espíritas, afinal, a noção da impermanência. As únicas leis imutáveis são as de Deus. Todavia, este grupo de espíritas, por uma série de fatores, entendeu que tal sistema é o mais adequado para o estágio evolutivo atual dos brasileiros e resolveu sair em sua defesa num momento em que este parecia seriamente ameaçado.

Contudo. se por um lado não podemos afirmar que o Espiritismo possui qualquer posicionamento político, social e ideológico específicos, podemos e devemos, por outro lado, elucubrar sobre seus princípios baseados no Cristianismo primitivo e deles tentar extrair um posicionamento perante a sociedade. Mesmo porque, enquanto espíritas, assumimos o compromisso de nos esforçarmos constantemente para dominar nossas más inclinações e, igualmente, de buscar aplicar os ensinamentos do Cristo na práxis. Logo, nada mais correto que estudar o Evangelho para entender de que forma devo lidar com o mundo e suas questões tão complexas, certo?

Porém, não é bem isso que vemos ocorrer na prática. Chavões raivosos como “bandido bom é bandido morto”, “pena de morte para ladrões e corruptos”, “tá com dó, leva pra casa”, e a crença na possibilidade de um sistema meritocrático num mundo desigual como o nosso, e que ainda se enquadra no estágio de provas e expiações, são frequentemente reproduzidos entre os espíritas – isso quando não justificam sua indiferença pelos sofredores dizendo que eles apenas receberam as consequências de suas próprias ações em vidas passadas, não conseguindo esconder uma pontinha de sadismo, como se estivessem satisfeitos pela justiça estar sendo feita -, assim como por boa parte dos cristãos na sociedade brasileira. E, embora o Espiritismo busque exaltar a importância do altruísmo e do amor pelo outro – principalmente quando se trata de um inimigo, ou seja, alguém que nos faz mal -, todos estes princípios parecem ir por água abaixo quando seus adeptos têm seus calos cutucados por uma situação incômoda qualquer.

É, inclusive, muito comum vê-los citando o capítulo 5 do Evangelho segundo o Espiritismo para mostrar que devemos deixar que os deserdados da terra sofram em paz pois suas aflições têm raízes no passado, e que se intervirmos estaremos interrompendo seu processo de depuração. Esquecem-se, entretanto, convenientemente, de que no mesmo capítulo 5, São Luís esclarece que não é possível saber até que ponto o sofrimento alheio deve ir, e que, consequentemente, existe uma enorme probabilidade de Deus ter nos inserido no mesmo contexto do sofredor para lhe servirmos como o “bálsamo consolador” que deve atenuar sua dor. O indício deste nosso dever perante quem sofre é evidente na medida em que a própria lei de Deus estabelece a caridade como condição máxima para a evolução e para a felicidade. Logo, se concluirmos que a prática desta caridade não consiste apenas na esmola, como diz o mesmo evangelho, mas também na paciência, na compaixão, na indulgência para com os defeitos do outro, etc., faz-se óbvio que a nossa tarefa perante os miseráveis e os criminosos não é julgá-los, tampouco ignorá-los, mas somente procurar compreendê-los e detectar a melhor maneira de auxiliá-los, tanto na vida privada quanto na vida pública. É natural que muitas pessoas não tenham condições de ajudar os mais pobres com quantias significativas de dinheiro ou provisões, mas daí até empenhar-se em denegrir a imagem destes, classificando-os como vadios ou problemáticos se constitui uma enorme falta de caridade. Afinal, jamais saberemos quais dificuldades acometeram determinado encarnado para que este chegasse àquele ponto, e nem quais faculdades ele pôde, ou não, desenvolver anteriormente para que evitasse tal estado de mental e material.

Cabe a nós Espíritas refletir sobre cada palavra do Cristo e adaptá-las ao contexto atual, não deixá-las de lado como se nada fossem além de belos discursos alegóricos, úteis apenas para a sociedade judaico/romana de mais de dois mil anos atrás e estéreis para o mundo moderno. Nossa tarefa está bem clara, pois no Espiritismo não mais existem parábolas e nem histórias figurativas. No Evangelho está expresso racionalmente:

“Auxiliai-vos sempre, pois em vossas provas mútuas, e jamais vos encareis como instrumentos de tortura. Esse pensamento deve revoltar todo homem de bom coração, sobretudo os espíritas. Porque o espírito mais que qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. O espírita deve pensar que sua vida inteira tem de ser um ato de amor e de abnegação, e que por mais que faça para contrariar as decisões do Senhor, sua justiça seguirá o seu curso. Ele pode, pois, sem medo, fazer todos os esforços para aliviar o amargor da expiação, porque somente Deus pode cortá-la ou prolongá-la, segundo o que julgar a respeito.”

Somente quando formos capazes de agir coerentemente com aquilo que acreditamos – ou pelo menos se estivermos empenhados em fazê-lo -, tanto na vida pessoal quanto na pública, é que poderemos nos chamar de verdadeiros espiritas.

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O Clube dos Escritores Espíritas surge como uma proposta de reunir e dar voz aos escritores espíritas que procuram despertar reflexões que possam, porventura, auxiliar seus leitores no dificultoso processo de reforma íntima.

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A Filosofia espírita como ferramenta para a libertação.

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