A cultura como ferramenta para o processo de aprendizagem

Carina De Paula
clubedaescrita.cc
Published in
5 min readJun 5, 2023

“A gente não quer só comida! A gente quer comida, diversão e arte.” Quando eu estava prestes a prestar o vestibular, lembro de ter me deparado com esse trecho da música dos Titãs muitas vezes e refletir sobre o seu significado para vida. Já ouvi muitos discursos pró-cultura, sobre a sua importância na formação de cada um e para o contexto social. Porém, não vejo a promoção do uso da cultura como uma ferramenta fundamental para o aprendizado ao longo da vida quando somos adultos. Parece que depois que estamos no mercado de trabalho o que vale são os textos técnicos e estudos relacionados ao que você faz. Afinal, por que vou usar o pouco tempo que tenho com uma leitura de ficção ou assistindo uma peça de teatro?

Uma das minhas primeiras memórias escolares está relacionada a música do Skank1, “É uma partida de futebol”, aquela que diz “Bola na área não altera o placar, bola na área sem ninguém para cabecear, bola na rede para fazer um gol, quem não sonhou em ser um jogador de futebol?”. Recém alfabetizada, estudei a letra para aprender sobre a escrita em versos e aumentar meu vocabulário. Já se passaram vinte anos e ainda me lembro da página do livro que continha a letra descrita. Permanecem também em minha memória os momentos passados na biblioteca, o quanto as capas do Pedro Bandeira e Lygia Bojunga Nunes me chamavam a atenção, enquanto a versão adaptada pelo Walcyr Carrasco para crianças de “Os Miseráveis” me fazia ter pesadelos a noite. E a emoção de ler meu primeiro texto teatral quando fizemos a montagem de “A Cigarra e a Formiga”? Mais tarde, quando estava aprendendo outros idiomas, as aulas que mais me marcaram envolviam músicas e encenações. Esses são momentos vividos na minha infância e adolescência que me acompanham até hoje. Todos têm em comum a cultura como meio de aprendizado.

Na faculdade e no mercado de trabalho me deparei com uma realidade que não conhecia até então: o que vale são os textos técnicos, que de fato vão contribuir para sua carreira e desenvolvimento profissional. Nunca consegui fazer as leituras obrigatórias com o mesmo ânimo de um bom livro de ficção, na maioria das vezes, lia apenas o necessário para uma prova ou como consulta para um projeto específico, perdendo um pouco do prazer que tenho em estudar e me desenvolver. Fora isso, quantas vezes fui julgada por estar lendo um calhamaço do Ken Follett, como Queda de Gigantes, ao invés da Legislação Aduaneira. Confesso que aprendi muito mais de história mundial, pessoas de diferentes culturas através da ficção do que de outros materiais, tendo maior sensibilidade, por exemplo, na escolha de produtos e serviços a serem negociados com determinados países nos projetos acadêmicos.

A conclusão que tiro com a minha experiência é de que a arte marca e tem propósito dentro do processo de aprendizagem, não apenas na educação formal e infantil. Quantas vezes você não foi ao cinema e saiu com vários insights para seu trabalho, como ao assistir ao filme Whiplash? Ou, ouviu uma música em um dia desafiador e conseguiu encontrar as respostas que procurava, como quando eu ouvi High Hopes numa manhã antes de começar as atividades do dia? Um entendimento para essas questões pode ser que a arte não tenha apenas um objetivo e que ela não exista apenas para entreter. Gostava muito de ler alguns best-sellers quando mais nova e ouvia o quanto era perda de tempo este tipo de leitura, mas, com eles eu aprendi sobre o funcionamento de tecnologias, estruturas organizacionais e pude usar algumas curiosidades em projetos no trabalho que levaram esse conhecimento a diante. Para mim, arte é muito mais do que entreter, mesmo que possa ter essa função também. Se pensarmos no teatro grego, as peças encenadas tinham como propósito ensinar lições e morais para vida em sociedade, os papéis de cada um como cidadão e trabalhador. Acredito que o mesmo conceito se aplique até hoje, tiramos lições importantes de um livro, filme, música ou pintura, só precisamos estar atentos ao que a arte nos passa.

Esse conflito entre técnico e artístico não é de hoje. Tolstói, inclusive, falou sobre isso em seu ensaio “O que é a arte?”: “A diferença entre a arte e a atividade mental, que requer preparação e uma certa sequência de aprendizado (não se pode ensinar trigonometria a alguém que não sabe geometria), é precisamente que a arte afeta as pessoas independente do seu grau de desenvolvimento e instrução, que a sedução de um quadro, de sons e de imagens contagia todo homem, qualquer que seja o nível de desenvolvimento em que ele se encontra.” Isso significa que a cultura é acessível, ela fala de uma forma que só outro ser humano é capaz de compreender, gerando o aprendizado neste processo.

Meu objetivo não é “queimar” conteúdos técnicos, muito pelo contrário, eles são fontes importantes de desenvolvimento e conhecimento. Digamos que eu trabalhe com marketing e preciso entender meu público-alvo, como se comporta, quais os objetivos, como pensa. Posso recorrer a Lygia Fagundes Telles10 se o produto para o qual trabalho seja vendido para moradores da cidade de São Paulo, ou a uma novela da Glória Perez11 e entender qual o assunto os telespectadores estão inteirados e são temas de discussão, para um conhecimento subjetivo, sem deixar de levar em consideração as pesquisas mercadológicas e metodologias que permitam esta compreensão.

O meu convite é para que você dê uma oportunidade para aprender através da arte. Escolha uma manifestação cultural e invista um tempo semanal para dedicar a apreciar, se permitindo não ser produtivo da maneira convencional neste momento. Depois, identifique se você aprendeu algo novo e como isso pode ser aplicado no seu cotidiano. Caso não aprenda no primeiro dia, insista mais um pouco, diversifique as fontes artísticas, precisamos criar alguns hábitos para nos desenvolvermos. Descobriu um novo conhecimento, uma habilidade ou até uma aptidão? Ótimo! Continue se dedicando e com o tempo perceberá o quanto você sabe mais sobre a vida de modo geral por conta da cultura.

A ideia de compreensão do outro através da arte nos torna mais sensíveis ao próximo, com empatia e respeito podemos criar relações mais saudáveis, gerando maior entendimento social e trazendo ganhos para todas as áreas da vida. O ser humano é complexo, mas, a todo tempo precisamos entender uns aos outros para podermos agir no dia a dia e a cultura nos possibilita aprender neste processo contínuo.

Acredito que usar a cultura como meio de aprendizagem é uma importante fonte de conhecimento, que ajuda a enfrentar os desafios do dia a dia, estimula a mente para encontrar respostas relacionadas ao trabalho e relações interpessoais e permite que pensemos com criatividade. A ciência nos auxilia a entender o mundo concreto, a arte nos leva além, porque “a gente quer inteiro e não pela metade”.

Referências:

AFFONSO, Sergio, Marcelo Fromer, Arnaldo Filho. Comida. Jesus não tem dentes no país dos banguelas. Rio de Janeiro: WEA, 1987.

TOLSTÓI, Leon. O que é arte? 4ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.

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