COMO AMO MEU FILHO TRANSGÊNERO?

Heden Fischer
clubedaescrita.cc
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6 min readNov 22, 2023

Como é bom receber um olhar acolhedor quando eu digo que agora minha filha é um homem trans.

Recentemente eu encontrei uma amiga de infância. Ela diz: meu filho é uma mulher trans. Eu digo: e minha filha, Nathalia, agora é um homem trans, Davi. Nós nos olhamos e rimos. Nós conversamos longamente.

Aqui pretendo estabelecer uma conversa aberta com vocês sobre como eu venho convivendo espontaneamente com o tema da transexualidade. Eu transmutei a minha visão ao me deparar com as singularidades da sexualidade a partir da leitura de alguns autores que trago para prosear com a gente: Antonio Quinet, Marco Antonio Coutinho Jorge, Maria Homem e Contardo Calligaris, Mony Elkaim, Ronaldo Pamplona da Costa.

Eu acredito que um convívio natural com um tema exigente ocorre quando a gente se dispõe a prosear, discutir, argumentar, arrazoar e dialogar. Assim ganhamos intimidade com o assunto, vamos desnudando as nossas fantasias e construindo novos modos de lidar com um fenômeno que é da ordem de uma condição humana.

Quando eu abro esta página do livro da minha vida as pessoas fazem cara de: “Homem trans? O que é isto? Eu não sei o que dizer pra você”. Eu esclareço para elas que um homem trans é quando uma pessoa nasce biologicamente fêmea, no convencional é do gênero mulher, e se atribui ao gênero homem. Elas retrucam: “Ah! Nossa deve ter sido difícil pra você aceitar esta situação”.

Eu respondo: “descobri que os momentos de maior angústia na criação dos meus filhos foi quando eu estava presa à uma moralidade transgeracional herdada culturalmente. E que com Davi eu me vi compelida a ligar o botão do meu modo Trans, que já estava instalado no meu cérebro. Significa: “TRANS — de transformar”. Eu precisei dar uma nova forma às minhas crenças e atitudes em relação às múltiplas faces da sexualidade humana[i].

Ao prosear com Maria Homem, ela me adverte que tenho uma tendência a me apegar à rigidez, que é uma propensão humana. Mas, como ela diz, a disposição natural humana é, ou deveria ser, sempre fluida. Nós somos seres pensantes e criativos e podemos modificar nossas formas de enxergar o mundo.

Eu descobri na conversa que Maria Homem estabelece com Contardo Calligaris, no livro “Coisa de menina?”, que as categorias “homem” e “mulher” existem apenas no âmbito das palavras e não na realidade da natureza e das relações humanas concretas. A cultura cria o que reconhecemos como sendo uma menina, uma mulher adulta. O gênero (homem ou mulher) é construído culturalmente.

Ronaldo Pamplona afirma que os transexuais têm certeza de que nasceram com o sexo trocado (homens com alma de mulheres e mulheres com alma de homens). Mas o desenvolvimento completo dessa percepção na criança ocorre a partir das relações que ela estabelece com os pais, com a família e a sociedade.

Nas minhas buscas por informações eu constatei que esse fato muito é muito comum, como ilustrado em filmes como a “A Garota Dinamarquesa”, “Tudo sobre a minha mãe” e “The Trans List”. Em um dos capítulos do livro de Antonio Quinet, Rosane Melo, nos presenteia com a citação do livro “Yo nena, Yo princesa”, de Gabriela Mansilla (2016), mãe de uma menina trans que se identifica como menina desde os dois anos de idade.

Com Marco Antonio Coutinho Jorge, eu aprendi que com o avanço da ciência, o corpo biológico (macho ou fêmea) pode ser modificado na tentativa de apaziguar conflito do sujeito em relação às suas disposições sexuais ou de gênero. E que é uma questão ainda controversa. Muitos cuidados e questionamentos devem ser observados.

Como amo Davi?

Pra mim a famosa frase de Simone de Beauvoir relembrada por Maria Homem — “Não se nasce, mulher, torna-se mulher” pode ser pensada assim: “Não se nasce … torna-se …”. Nathalia nasce fêmea e torna-se Davi, construindo sua forma única de ser no mundo.

Outro aprendizado com Marco Antonio Coutinho é que cada pessoa se constitui em sua singularidade. A experiência transexual é estritamente singular. Para cada sujeito o que está em jogo é uma constelação simbólica única, exclusiva. A cada sujeito deve-se outorgar o direito de dizer algo que ninguém poderia dizer em seu lugar.

Eu-mãe, pai-de-Davi, irmão-de-Davi, Davi, nós construímos Davi juntos em nossas relações. Davi se construiu na sua relação com o mundo. Todas as pessoas contribuíram de algum modo nesta construção: seja as vivências que teve na escola, com amigues, na família extensa, na comunidade, nas instituições que teve contato, entre outros contextos.

“Amamos nossos filhos como imaginamos que eles sejam, mas o que pensamos deles não é necessariamente como eles são, menos ainda aos olhos deles”. Eu interpretando essa frase de Mony Elkaïm percebi que o que eu pensava de Nathalia não era necessariamente como ela era, menos ainda aos olhos de Davi. Eu nunca imaginei que Nathalia seria uma princesa da Disney. Eu pensava que ela seria uma menina que gostava mais de coisas de menino, mas não tinha a menor ideia de que algum dia ela se tornaria Davi.

Desde o nascimento de Nathalia eu entendi que para ela era muito importante preservar a sua individualidade. Desde tenra idade, Nathalia, insistentemente, me disse que veio a este mundo para viver pare-Sendo Davi[ii].

Nathalia já com 3 anos não gostava de usar o soutien do biquini; com 4 anos pediu uma fantasia de batman para ir à festa de carnaval da escola; escolheu Tarzan como tema de sua festa de aniversário de 6 anos e ela realmente se vestiu de Tarzan; preferia o Ken à Barbie; odiava roupa cor de rosa; só gostava de blusas largas, tênis e calças.

Mony Elkaïm me ensinou que eu não tenho outra escolha a não ser adaptar o meu comportamento a cada filho, por ensaio e erro. Ao mesmo tempo que devo assumir e reivindicar o lugar de mãe, sobretudo no papel que me cabe na hora da decisão e de estipular limites que meus filhos não devem ultrapassar.

Por muito tempo eu ouvi de Davi — você dá mais valor a meu irmão do que a mim. Na minha cabeça eu não entendia o que ele sentia. Hoje o meu o coração entende.

Mony Elkaïm me apontou claramente que a segurança que Davi sente ao ser amado por mim e seu pai é a via principal que lhe permite lidar com os desafios da vida. Mas que eu preciso amar Davi respeitando as suas escolhas. Às vezes para manter o meu amor e do pai dele, Davi tentou se conformar à imagem que tínhamos dele. Quanto mais nós instigamos Davi a ser o que queríamos, mais fizemos com que Davi não se sentisse amado, pois não é Davi que é amado, e sim a representação que Davi forjou para nos agradar.

Eu encontrei um conforto no coração, na mente, na alma e no espírito quando desobriguei Davi de ser como eu queria. Mais consciente dos meus desejos, eu pude liberar Davi para se constituir como um ser desejante, diferenciado de mim, capaz de assumir a vida a seu modo.

Como amo Davi? Hoje eu reconheço Davi em suas escolhas. Nathalia existiu como um caminho para chegar a Davi.

Fonte:

Costa, R. P. da. Os onze sexos: as múltiplas faces da sexualidade humana/Ronaldo Pamplona da Costa. São Paulo: Kondo Editora, 2005.

Elkaïm, Mony. Em que roteiro me encaixo. In: Elkaïm, Mony. Como sobreviver à própria família. São Paulo: Integrare Editora, 2008. p. 51–55.

Homem, M. Coisa de Menina? Uma conversa sobre gênero, sexualidade, maternidade e feminismo/Maria Homem, Contardo Calligaris. Campinas: Papirus 7 Mares, 2019.

Jorge, M. A. C. Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência/Marco Antonio Coutinho Jorge, Natalia Pereira Travassos. Rio de Janeiro: Zahar, 2018

Quinet, A.. A Psicanálise na era trans. In; Quinet, A. & Alberti, Sonia. Sexuação e Identidade. Rio de Janeiro: Atos e Divãs, 2019. p. 27–37.

[i] frase que dá nome ao título do livro de Ronaldo Pamplona.

[ii] Quinet diz que nem o biológico que é o sexo (macho ou fêmea) nem o convencional que é o gênero (homem ou mulher) servem para definir o feminino e o masculino. … No que se refere aos gêneros, formações culturais convencionais do masculino e feminino, não se trata de ser, mas de parecer. … — o sujeito do inconsciente não é uma marionete da cultura a qual está inserido, nem escravo da sua biologia. Pelo contrário! Tanto a cultura quanto o corpo biológico passam pelo filtro do inconsciente e pelo desejo do Outro. O sujeito sexuado se aliena aos significantes do desejo do Outro, que não é exatamente a cultura, e sim a cultura dos desejos dos pais, os ditos parentais que interpretam os modelos culturais do que se convencionou chamar de masculino e feminino. Mas o sujeito não e só alienado ao Outro, ele é separado do Outro, e assim, construirá a seu modo os semblantes de homem e mulher.

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