Costurando relações multiplicadoras: a liderança humanizada no contexto da saúde

Valeska de Castro Dilascio
clubedaescrita.cc
Published in
5 min readDec 8, 2022

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Você já parou para observar uma colcha de retalhos?

Gostaria de te convidar a fazer isto, antes de continuar a leitura deste texto.

Agora que observou: o que significou para você?

Imagine essa colcha de retalhos como a construção das relações humanas. Cada retalho como único, como nós seres humanos com nossa individualidade. Com cada elo ampliamos nossas relações.

Como em um passado recente vivemos uma pandemia, a qual parece estar novamente nos assombrando, quero jogar luz à qualidade das relações dos profissionais da saúde.

Consegue visualizar o tamanho dessa colcha de retalhos considerando a quantidade de relações que os profissionais da saúde necessitam estabelecer para realizar seu trabalho no dia a dia?

As organizações de saúde possuem uma heterogeneidade de profissionais, reunindo nesses espaços médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos, auxiliares de copa e limpeza, oficiais de manutenção, seguranças, dentre outros. Essa diversidade requer uma construção de relações de confiança e saudáveis.

O trabalho desses profissionais envolve ainda a interação com outras pessoas, que são os pacientes e os respectivos familiares. As relações se tornam mais complexas e cada vez mais requerem confiança e respeito. Aqui, podemos ter a dimensão do tamanho da colcha de retalhos…

As relações têm papel fundamental na construção de uma vida mais saudável e feliz, o que vem sendo comprovado por pesquisas e pelo estudo na Universidade de Harvard. https://agazetadoacre.com/2020/06/artigos/depois-de-80-anos-de-pesquisa-harvard-revela-o-que-descobriu-sobre-a-felicidade/

Gary Bolles diz em seu livro, The next rules of work, que o futuro do trabalho está centrado no ser humano. Por isso, sinto a necessidade de resgatarmos a humanização. Para que sejamos capazes de cuidar de nossa saúde física, mental, emocional, espiritual e social e então, podermos cuidar do outro e de nossas relações.

Inspirada na tríade Eu-Nós-Mundo, do livro Liderança Exponencial de Tonia Casarin e das dimensões Liderança de Si, Liderança nas Relações e Liderança Sistêmica, que compõem o arquétipo “Liderança Inovações Conscientes” do programa de desenvolvimento de lideranças Young Leaders, do Instituto Anga, encontrei essa oportunidade de ressaltar a competência essencial para a humanização, que é o autoconhecimento.

Autoconhecimento como primeiro passo para a humanização

E você deve estar pensando: mas esse assunto não é novidade! Realmente não. Porém, o autoconhecimento é um processo contínuo e poderoso, que nos permite aprender, desaprender e reaprender a lidar com a vulnerabilidade, a construir relações de confiança, o qual muitas vezes abandonamos.

Quando desenvolvemos o autoconhecimento, gerenciamos a nós mesmos, o que é fundamental para mantermos o bem-estar e a eficiência.

No livro a Literatura como Remédio, Dante Gallían conta a experiência do Laboratório de Leitura, criado inicialmente em uma Faculdade de Medicina, a partir de encontros para compartilhamento de obras clássicas. O objetivo era a humanização, tendo a literatura como saúde para a alma. Uma passagem do livro me marcou: “o processo de autoconhecimento, que se inicia na experiência solitária da leitura, necessita do encontro com o outro para ir adiante”.

A ponderação que faço é que como líderes, no sentido de desenvolvermos pessoas e influenciarmos positivamente, temos que nos conhecer para que tenhamos o reconhecimento e a aceitação do outro. Precisamos ter consciência de nossas emoções, sentimentos, pensamentos, pois nossas ações e comportamento afetam o outro.

A sabedoria prática de Aristóteles

Barry Schwartz, no TED Our loss of wisdom, fala sobre o conceito da sabedoria prática de Aristóteles, que é uma virtude que combina vontade moral e habilidade moral em prol da interação humana.

Compartilho o exemplo mencionado por Barry, referente à extensa lista de tarefas de um zelador de hospital, em que consta limpar equipamentos, varrer o chão, lavar janelas, esvaziar o lixo, reabastecer os armários entre outras atividades, mas nenhuma tem relação em fazer algo para uma outra pessoa.

Contudo, quando de entrevistas feitas por psicólogos a zeladores sobre sua atuação, eles encontraram declarações surpreendentes como de Mike, que parou de esfregar o chão quando viu que o paciente Sr. Jones se levantou da cama, para fazer um pouco de exercício, andando lentamente de um lado a outro no corredor. E da Charlene que disse ter levado uma advertência, por ter deixado de aspirar a sala de visitantes, porque familiares estavam adormecidos naquele momento. Tendo ainda o Luke que limpou o chão do quarto de um jovem em coma por duas vezes, porque o pai que estava em vigília por seis meses, mencionou não tê-lo visto fazer a limpeza do chão na primeira vez e ficou nervoso.

São esses comportamentos de zeladores e demais profissionais, que sabem quando realizar uma ação diferenciada a apenas seguir sua lista de tarefas, para fazer as pessoas se sentirem um pouco melhor, que propiciam maior qualidade no atendimento ao paciente e permitem que hospitais funcionem bem.

Pessoas assim, que promovem interação humana envolvendo gentileza, cuidado e empatia possuem o que o conceito de sabedoria prática propõe, que é ter a vontade moral de fazer o certo para outras pessoas e a habilidade moral de descobrir o que significa fazer o certo.

Essa sabedoria depende da experiência — e precisamos de tempo para conhecer as pessoas para aprender a cuidar delas.

As habilidades que fortalecem as conexões humanas

Para as relações se manterem saudáveis, assim como a costura dos retalhos duradoura, a colaboração também é mencionada por vários autores como fundamental. Destaco trecho do documento CanMEDS Physician Competency Framework, estrutura educacional que descreve as habilidades necessárias para todas as áreas da prática médica, elaborado pelo Royal College:

“A colaboração requer relacionamentos baseados em confiança, respeito e tomada de decisão compartilhada entre uma variedade de indivíduos com habilidades complementares em vários ambientes ao longo do cuidado contínuo. Envolve o compartilhamento de conhecimento, perspectivas e responsabilidades, e uma vontade de aprender juntos. Isso requer compreender os papéis dos outros, perseguir objetivos e resultados comuns e administrar as diferenças.” (tradução livre).

A confiança é construída a partir do momento que estabelecemos e mantemos relacionamentos positivos com os colegas, apoiando o cuidado colaborativo.

A humanização envolve empatia, escuta ativa, compaixão, vulnerabilidade e colaboração. A conexão humana deve ser preservada e valorizada, como cada colcha de retalhos é uma arte única.

Costure as ideias que conversamos nesse texto e multiplique relações saudáveis.

E agora, que tal observar a colcha de retalhos sob a perspectiva do elo com as relações? Sigo com Minouche Shafik, Diretora da London School of Economics, quando ela diz que “No passado, os empregos dependiam dos músculos. Agora, dependem do cérebro, mas, no futuro, eles vão depender do coração”.

Referências:

ARQUÉTIPO Liderança Inovações Conscientes 2023. Instituto Anga e MIT Sloan Management Review Brasil Disponível em: https://www.institutoanga.com.br/arquetipo-2023. Acesso em 14 nov 2022.

BOLLES, Gary A. The next rules of work: the Mindset, Skillset and Toolset to Lead Your Organization Through Uncertainty. 1 ed. London: Kogan Page, 2021.

CASARIN, Tonia. A liderança exponencial: a Transformação Humana é o Motor dos Líderes do Futuro. 1 ed. Decola, 2022.

DEPOIS de 80 anos de pesquisa, Harvard revela o que descobriu sobre a felicidade. A Gazeta do Acre, Rio Branco, 24 junho 2020. Disponível em: https://agazetadoacre.com/2020/06/artigos/depois-de-80-anos-de-pesquisa-harvard-revela-o-que-descobriu-sobre-a-felicidade/. Acesso em 29 nov. 2022.

Frank JR, Snell L, Sherbino J, editors. CanMEDS 2015 Physician Competency Framework. Ottawa: Royal College of Physicians and Surgeons of Canada; 2015

GALLIAN, Dante. A literatura como remédio: Os clássicos e a saúde da alma. 1 ed. Martin Claret, 2017.

SCHWARTZ, Barry. Our loss of wisdom. Palestra proferida no TED-Ed, fev. 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VYu0kMCxFEE. Acesso em 20 nov. 2022

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