Destino Alzheimer: uma viagem possível

Juliana Toscano Machado
clubedaescrita.cc
Published in
8 min readNov 16, 2023

Você já praticou slackline — também conhecido como corda bamba? Eu não, mas quando recebi o diagnóstico de demência do meu pai foi como se subisse na corda pela primeira vez. Ansiosa que sou, já queria me equilibrar, mas entendi que precisaria de paciência, de persistência e de muito treinamento para conseguir.

Assim como a prática do slackline ou de qualquer exercício que desafie a nossa capacidade de equilíbrio e de presença — cuidar de um paciente demenciado não é fácil. Dá medo de cair e se espatifar no chão. De machucar alguma parte do corpo e do julgamento das pessoas que lhe veem passar vergonha . É desafiador!

Estrada com curvas descendentes e sinuosas. Ao longo do trajeto, acompanhando as curvas, um encosta com grama verde. Ao fundo, paredão de pedras cinzas.

Se tivermos paciência e não desistirmos logo, podemos ir longe. Após o desequilíbrio inicial, cuidar de uma pessoa demenciada é como embarcar em uma viagem por estradas desconhecidas. Há curvas sinuosas, subidas e descidas. Nesses momentos, é preciso desacelerar e redobrar a atenção. E mudar de rota, se for preciso. Mas há também longos trechos de reta, quando a viagem se torna mais tranquila. E por que não, prazerosa?

O desejo de que meu pai estivesse sempre bem e minha vontade de cuidar foram estímulos para embarcar nessa viagem. A informação foi uma grande aliada. Assim, ficou mais fácil pegar a estrada e seguir viagem.

Destino — Alzheimer

O diagnóstico de Alzheimer — o tipo de demência mais comum — chegou logo após um “apagão” ocorrido durante uma internação para tratar de um problema de intestino. Dias após a saída do hospital, percebemos uma leve perda de memória. Nada que nos fizesse preocupar.

Mas por prevenção, decidimos — eu, minha única irmã e ele — investigar o que poderia ter acontecido. As semanas seguintes foram preenchidas por consultas, exames e testes. Geriatras, neurologistas e neuropsicólogos — juntos — fecharam o diagnóstico.

Como não existe cura para a doença, tratar e cuidar eram as únicas opções. Com a doença em estágio inicial, o indicado foi tentar evitar que a demência de meu pai avançasse rapidamente.

O tratamento inicial — só pra gente se localizar no mapa — se constituiu em:

. remédios que podem impedir a progressão da doença em algumas pessoas;

. suporte emocional;

. estimulação cognitiva, que pode desacelerar a deterioração da cognição em alguns pacientes;

. e pilates — que tem permitido a sua da independência.

Fazendo as malas

O próximo passo foi planejar a viagem. Sabíamos que quanto mais informações tivéssemos, menos imprevisível se tornaria o trajeto.

Como já me interessava pelos cuidados paliativos, comecei a buscar informação junto a profissionais envolvidos com essa área, como a geriatra Ana Cláudia Quintana Arantes. Há muito material produzido por ela e por outros profissionais na internet.

Também passei a seguir especialistas paliativistas nas redes sociais. No Instagram, indico as doutoras Juliana Duarte, Alexandra Barreto Arantes, Thais Nóbrega e também a enfermeira Luziane Moreira. Além das redes sociais, cursos, livros, podcasts, revistas e jornais têm sido fontes preciosas. Os riscos de se perder pelo caminho ficam menores.

Em 2021, fiz um curso introdutório de cuidados com idosos com necessidades especiais. A abordagem paliativista transformou meu olhar. Ela me mostrou que podia cuidar de qualquer pessoa — não somente de um idoso — de uma forma diferente.

Aprendi que o paciente deveria ser o foco do cuidado e não a doença. O respeito à pessoa, à sua história e aos seus desejos deveriam estar em primeiro lugar.

Já em 2022, fiz uma nova capacitação para aprender a cuidar de pessoas gravemente doentes ou em final de vida. Cuidados paliativos na veia. Ensinamentos que ajudam a mim e à minha irmã a cuidar melhor de meu pai.

Hora da viagem

Malas feitas, embarcamos.

Vários fatores têm deixado a viagem menos imprevisível e complicada.

A saúde não é tudo no processo do cuidado. Ter conversas sinceras e compartilhar decisões sobre o tratamento, as medidas de cuidado e sobre os desejos individuais têm feito toda a diferença. Quando elas ocorrem, meu pai, minha irmã e eu, decidimos o rumo a tomar caso ele ou alguma de nós adoeça. Muitas vezes temos opiniões divergentes, mas o que vale é o desejo de cada um. Respeito é a palavra-chave.

Uma das primeiras conversas que tivemos foi sobre a bebida e o isolamento durante a pandemia. Assuntos delicados especialmente para nós, filhas.

Durante a pandemia, sem vacinas e com isolamento obrigatório, meu pai, com 82 anos, não deixou de sair nenhum dia para encontrar seus amigos na praça. Tivemos muita sorte, pois ele só pegou a COVID após a segunda dose da vacinal. UFA!

A bebida sempre foi um dos prazeres de meu pai. Mesmo a ciência mostrando que o consumo excessivo de álcool pode danificar as células nervosas do cérebro e facilitar o desenvolvimento da demência, ele não parou de beber. Não foi fácil entender sua decisão, mas respeitamos.

Não correr para chegar mais rápido

A paciência é fundamental durante o trajeto. Desenvolvemos essa habilidade e, aos poucos, paramos de responder a perguntas com: “pai, já lhe dissemos isso”; “você já me perguntou isso hoje”. Estamos sempre alertas e evitamos qualquer frase que demonstre a fragilidade da memória e o deixe angustiado.

Pessoas demenciadas valorizam a segurança. Por isso, quando saímos e meu pai pede para voltar para casa, atendemos. Também não insistimos quando o convidamos para fazer algo e ele não aceita. Seu lar é seu porto seguro.

Aprendemos a não tentar convencer meu pai sobre a nossa verdade. Não adianta. Com a doença em estágio moderado, ele não entende a nossa posição e só fica ansioso e angustiado. Vale ressaltar que no estágio atual ele ainda tem autonomia e independência, mas que se reduzem a cada dia.

Não é porque meu pai está demenciado que deixamos de proporcionar a ele oportunidades de fazer coisas de que gosta como ir a concertos, estar com familiares e amigos. Aproveitamos todos os momentos para criar memórias que serão úteis quando o luto chegar e a saudade apertar.

Quem dirige precisa de descanso

Em uma viagem prolongada, não se pode descuidar de quem dirige. É preciso parar, esticar as pernas, descansar e se alimentar — física e espiritualmente — da melhor maneira possível. Só assim, todos chegarão bem ao destino.

Mesmo eu não sendo a cuidadora principal de meu pai, tendo a negligenciar meu autocuidado. E as consequências desse abandono podem levar ao esgotamento físico e mental.

Por algum tempo, descuidei de mim e vi minha saúde se deteriorar. Eu quase cheguei à fadiga empática — exaustão física e emocional resultante do excesso de empatia ao lidar com o sofrimento alheio. Precisei priorizar a mim mesma para que algo mais grave não acontecesse.

Não há receita pronta para o autocuidado. Cada pessoa encontra seu caminho. Tenho apoio de profissionais do cuidado, pratico atividades físicas e cuido da minha alimentação. Ter o suporte de amigos — esses essenciais em qualquer fase da vida — é um diferencial. Só falta retomar atividades que alimentem a minha alma.

O autocuidado é também fundamental para lidar com uma das partes mais dolorosas no meu caminhar. Dia a dia, convivo com as pequenas mortes que a doença traz. E elas são muitas. A cada perda na cognição ou na independência de meu pai, sinto que é uma parte dele que se vai. É impossível não entrar no luto antecipatório. Então, preciso acolhê-lo.

Sem hora para chegar

A viagem iniciada em 2020 pode ou não ser longa. Ninguém prevê o que vai acontecer. Mesmo com todo o planejamento, com todo ferramental adquirido, seguimos sem hora pra chegar.

Em nosso caminho, lidamos com medo, com a angústia e abraçamos a tristeza. Mas são muitas as alegrias também. Temos — sempre — muitos motivos para celebrar a vida de meu pai, do jeitinho que ela é.

Nossa viagem tem valido a pena.

SAIBA MAIS

O Alzheimer é o tipo de demência mais comum. É uma doença de curso lento e progressivo que afeta a atividade cerebral, causando o comprometimento da memória, do pensamento e do comportamento.

No Brasil, mais de um milhão de pessoas possuem algum tipo de demência, segundo o braço brasileiro da Alzheimer Association. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que com o envelhecimento da população, “o número de pessoas que vivem com demência em todo o mundo deverá aumentar de 55 milhões em 2019 para 139 milhões em 2050”.

Estima-se que as pessoas mais afetadas estão acima de 65 anos — entre 2% a 10% de todos os casos. Mulheres lideram no número de casos.

Muitas vezes, sinais e sintomas demoram a se manifestar, mas com o tempo, eles vão ficando cada vez mais claros.

A Alzheimer Association (Estados Unidos), listou 10 sinais e sintomas comuns da doença:

1. Perda de memória que atrapalha a vida diária;

2. Desafios no planejamento ou resolução de problemas;

3. Dificuldade em concluir tarefas familiares;

4. Confusão com hora ou lugar;

5. Problemas para entender imagens visuais e relações espaciais;

6. Novos problemas com palavras na fala ou na escrita;

7. Extravio das coisas e perda da capacidade de refazer etapas;

8. Julgamento diminuído ou ruim;

9. Afastamento do trabalho ou das atividades sociais;

10. Mudanças de humor e personalidade.

Não há cura para o Alzheimer. No tratamento, é fundamental ter o apoio de profissionais especializados como geriatras, neuropsicólogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, por exemplo. Cada um deles colabora para a melhora da qualidade de vida de quem tem a enfermidade e também — de forma direta ou indireta — de familiares e cuidadores.

A ciência em campo

Em todo mundo, cientistas têm desenvolvido pesquisas na busca da melhora do tratamento ou da cura. São várias as linhas de estudo.

Pesquisadores dos Departamentos de Farmacologia e de Bioquímica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) trabalham para aperfeiçoar exames de sangue que possam identificar, de forma precoce, pessoas que tenham maior probabilidade de desenvolver alguma demência. Já o Laboratório de Biologia da Universidade de Campinas (Unicamp) estuda a relação entre o metabolismo e o Alzheimer.

John Hardy, da University College de Londres (Reino Unido), se dedica a estudar as micróglias, células de proteção encarregadas de purificar o cérebro. Alguns cientistas na Colômbia e nos Estados Unidos estudam a proteína TAU, que atua na regulação da dinâmica, estabilidade e funcionamento das estruturas neuronais.

Há ainda estudos para encontrar medicamentos que possam retardar o avanço das demências. Neste ano, dois novos fármacos ganharam evidência. O lecanemabe, dos laboratórios Biogen e Eisan, e o donanemabe, da empresa Eli Lilly, ambas empresas norte-americanas.

Prevenção

É animador ver que a ciência avança rumo à cura de demências como o Alzheimer. Enquanto a cura do Alzheimer não chega, a prevenção é o caminho para evitar a doença.

A geriatra e paliativista, Ana Claudia Quintana Arantes, afirma que é importante fortalecer o cérebro. Mesmo que a demência se desenvolva, o impacto da doença é diminuído. “O aprendizado é a chave do rejuvenescimento para o cérebro”, informa a médica em seu livro “Pra vida toda valer a pena — pequeno manual para envelhecer com alegria”. Estudar música, idiomas e meditar são dicas dadas por ela.

A prática regular de exercícios físicos também diminui o risco das demências. Assim como o controle da hipertensão, do peso e do diabetes.

Há muitas outras orientações nesse sentido. O que importa é se cuidar.

REFERÊNCIAS

No Instagram

. Alexandra Barreto Arantes (@alexandra_geriatra)

. Ana Claudia Quintana Arantes (@anaclaudiaquintanaarantes)

. Associação Brasileira de Alzheimer (@abrazalzheimer)

. Juliana Duarte (@drajulianaduarte)

. Luziane Moreira (@luziane.cuidandodeidosos)

. Thais Nóbrega (drathaisgeeriatra)

Livros

. Pra vida toda valer a pena viver: pequeno manual para envelhecer com alegria, Ana Claudia Quintana Arantes, Rio de Janeiro, Sextante, 2021.

. A morte é um dia que vale à pena viver, Ana Claudia Quintana Arantes, Rio de Janeiro, Sextante, 2019.

Sites

. Associação Brasileira de Alzheimer

. Alzheimer Association (EUA)

. Alzheimer Association Brasil https://www.alz.org/br/associacao-alzheimer-brasil.asp

--

--

Juliana Toscano Machado
clubedaescrita.cc

Jornalista, Cofundadora do Colo de Cumaru, Sentinela - Guardiã de Fim de Vida. Uma defensora dos cuidados paliativos.