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Enquanto leio, penso nos que não podem ler

Adriana Ferreira
clubedaescrita.cc
Published in
8 min readDec 7, 2022

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Reflexões sobre a importância e a falta de acesso à leitura.

É consenso, dentre os que leem, o quanto esse hábito é importante. Listamos com facilidade os benefícios e prazeres que uma boa leitura traz. Contudo, parte significativa da população brasileira não lê, nem tem acesso a livros. Cenário que certamente contribui para aprofundar a desigualdade social e cultural que vivenciamos.

É um sonho, quiçá utopia, imaginar um dia esse brasilzão garantindo educação e acesso à cultura para todos os seus cidadãos. Para isso, é necessário mudar a realidade e nós, defensores dos livros e da leitura, podemos colaborar de maneira significativa para essa transformação.

Segundo o sociólogo Jessé Souza, são os capitais culturais e econômicos os elementos estruturantes da hierarquia social moderna. Eles permitem, a quem tem condições de acumulá-los, sua permanência em classes mais altas; além de alimentar seus esforços — conscientes ou inconscientes — para se manter nessa posição com todos os privilégios.

Logo, pensar em quanto a educação poderia reduzir a profunda desigualdade social que historicamente construímos, exige também pensar nos atores capazes de contribuir para tal mudança. Seriam justamente os que acreditam na potência de ler, os privilegiados capazes de intervir, vigiar e motivar ações de incentivo à leitura e acesso ao livro.

Mas por que a leitura teria tanto impacto na redução da desigualdade social?

A leitura impulsiona a inclusão cultural, promovendo o contato com diferentes artes, como música, teatro e exposições. Sendo ela, portanto, o primeiro passo para o desenvolvimento intelectual do indivíduo, expandindo sua visão de mundo e compreensão da sua posição social. (Eliana Yunes, filósofa e professora)

Com as leituras de ficção podemos construir ideias sobre o agir, o sentir e o pensar do outro e transferir essas ideias para a realidade, conforme afirma o psicólogo e escritor Keith Oatley. Contribuindo, portanto, para o desenvolvimento da empatia.

Além disso, o hábito de ler beneficia o cérebro, a cognição e a memória. Possibilita a construção do pensamento crítico e da autonomia. Permitindo que o indivíduo questione, se posicione, tome decisões e atue socialmente a partir de suas próprias ideias.

Mas, a despeito de toda defesa a seu favor, fato é que ler não está na rotina de milhares de brasileiros. Seja por a) falta de acesso a livros, b) por falta de incentivo ou c) por falta de condições, tempo e energia para a leitura.

Sobre falta de condições, tempo e energia para a leitura

Facilmente esquecemos de considerar tudo que precisa estar funcionando para que a leitura flua, principalmente se nada disso costuma nos faltar.

Comecemos pela condição mais básica para a leitura: o saber ler. No Brasil, o alto índice de analfabetismo funcional torna a prática da leitura de textos longos improdutiva. De acordo com o último Indicador de Alfabetismo no Brasil (Inaf), de 2018, 29% da população é analfabeta funcional, não consegue compreender o que lê.

Depois, consideremos questões estruturais: estar alimentado, ter uma boa iluminação, estar confortável em um ambiente calmo ou minimamente silencioso, ter algum tempo sobrando para a folga e o lazer. Contexto inexistente para grande parte da população.

Por fim, precisamos reconhecer que a leitura exige concentração, foco e é por isso que muitas vezes ela perde para entretenimentos mais acessíveis, como assistir tv ou ouvir música. Primeiro porque muitas vezes dá para fazê-los enquanto se executa outra tarefa doméstica ou o próprio trabalho — a famosa otimização do tempo; segundo, porque num primeiro contato ler um livro pode parecer uma tarefa difícil, extensa e desafiadora.

E assim, diante de tantas dificuldades disfarçadas de exigências, ler se torna tão distante que, em muitos, nem dá vontade de começar.

Sobre a falta de incentivo

Outro fator relevante é a falta de familiaridade com o livro e a leitura. Seja por um ambiente familiar sem exemplos, ou então pela precariedade do ambiente escolar que teve acesso e pôde frequentar.

À imensa diversidade de estruturas familiares, nos mostram que nem toda casa tem alguém para incentivar os primeiros passos da leitura. Seja pela falta de hábito dos adultos responsáveis, ou pela falta de condições financeiras, educacionais ou culturais.

Fazendo com que crianças e jovens dependam do ambiente escolar para conhecer a leitura. No entanto, sabemos que a qualidade da educação não é a mesma para todos. Em muitos casos ela é precária, com escolas sem livros, bibliotecas, mediadores de leitura.

Até hoje, ano 2022 do século XXI, temos escolas públicas no país sem biblioteca. Mesmo a tardia legislação (Lei 12.244/10), criada em 2010, que determinava o prazo de até maio de 2020 para que todas as escolas brasileiras — públicas e privadas — tivessem uma biblioteca, não conseguiu mudar esse cenário.

O prazo de cumprimento dessa lei, durante a pandemia, foi estendido em dois anos. Chegamos em 2022 e há em tramitação um projeto de alterações na lei, incluindo (pasmem?!) uma nova prorrogação de prazo.

Não bastasse o déficit já existente, nos últimos anos o país viu diversas bibliotecas públicas precisando fechar devido à falta de recursos. Contexto que impossibilita que professores despertem o interesse de crianças e jovens pela leitura.

Foto de Adriana Ferreira | Arquivo pessoal.

Sobre a falta de acesso a livros

Acontece nas escolas, acontece nas cidades. Atualmente, conforme o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), o Brasil conta com 5.293 bibliotecas públicas (dado de 2021). O que, pela lógica matemática, não dá pelo menos uma biblioteca pública para cada um dos 5.570 municípios brasileiros.

Sendo assim, pelo menos 277 municípios estariam sem um espaço público, que possibilite o acesso a livro, leitura e demais atividades culturais. Porém, considerando que algumas cidades possuem mais do que uma biblioteca pública, concluo que o número de cidades sem esse espaço é bem maior.

Para Eliana Yunes, bibliotecas públicas e comunitárias são fundamentais na promoção de atividades que divulguem e incentivem a leitura em um ambiente propício. E eu concordo, meu primeiro contato com livros foi em bibliotecas escolares, inicialmente no ensino fundamental e médio, depois na graduação.

Eu não tinha muitos livros em casa, tampouco na adolescência podia comprar livros. Portanto, esses espaços foram fundamentais para minha aproximação com livros e desenvolvimento do hábito de ler.

Ler é um direito de todo cidadão e garantir o acesso aos livros possibilita experienciar a leitura, seus benefícios e possibilidades de desenvolvimento pessoal. Não garantir esse acesso é negar a possibilidade de escolha sobre o querer ler e o contato com outras formas de cultura.

Considerando tais razões para o distanciamento da maioria dos brasileiros com os livros e a leitura, fica evidente o quão amplos são os desafios de incentivo. Afinal, não basta dar livros e ensinar a ler, é preciso olhar com atenção para questões fundamentais que propiciem um ambiente favorável para o despertar literário.

Então, afinal, o que podemos fazer?

Diante de tanta complexidade, quero me ater a ações possíveis que possam contribuir para a transformação desse cenário. Acredito ser preciso um esforço coletivo a favor de quem ainda não tem condições de cobrar por seus direitos ou não teve a oportunidade de acesso à educação e livros como nós.

Olhemos primeiro para as políticas públicas acerca do tema. Cito aqui as duas que considero principais, por ainda estarem vigentes e por sua abrangência. Mas, existem ou existiram outras, espero despertar seu interesse de pesquisar mais sobre elas.

Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) — 2006: Construído em conjunto por diversos especialistas no tema e profissionais da cultura, educação e cadeia produtiva do livro, atua em quatro eixos: 1.Democratização do acesso; 2.Fomento à leitura e à formação de mediadores; 3.Valorização institucional da leitura e incremento de seu valor simbólico; 4.Desenvolvimento da economia do livro. Acesse o plano completo aqui.

Lei 13.696/18 Política Nacional de Leitura e Escrita: Aprovada em 2018, a Lei pretende: 1.A universalização do direito ao acesso ao livro, à leitura, à escrita, à literatura e às bibliotecas; 2.O reconhecimento da leitura e da escrita como um direito; 3.O fortalecimento do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas; 4.A articulação com as demais políticas de estímulo à leitura, ao conhecimento, às tecnologias e ao desenvolvimento educacional, cultural e social do País, especialmente com a Política Nacional do Livro, instituída pela Lei 10.753/03; 5.O reconhecimento das cadeias criativa, produtiva, distributiva e mediadora do livro. Confira a lei na íntegra aqui.

Vendo como essas legislações ficam bonitas no papel, o sonho de formar novos leitores parece estar caminhando para a realidade. Porém, o fato é outro: a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, mostra que o percentual de leitores brasileiros se mantém na média de 50%, desde 2001, quando começou a ser aplicada.

O fracasso dessas ações pode ser atribuído a execução de forma inconstante e desestruturada, sempre à mercê dos interesses de cada ciclo de governantes. Causando pequenos avanços e retrocessos, fazendo parecer, num balanço, que não conseguimos sair do lugar.

Portanto, tornar essas legislações conhecidas dentro da comunidade — ou bolha –, que acredita no poder dos livros, contribui para um esforço ativo na vigilância quanto à sua execução. E fiscalizar a execução de ações sociais e afirmativas pode estimular a responsabilidade cidadã dos mais privilegiados.

Foto de Adriana Ferreira, Bienal do Livro | Arquivo Pessoal.

Compreendido nosso papel na esfera governamental, partimos para ações independentes. Cito aqui ideias que podem despertar seu interesse em aprofundar no assunto e quem sabe agir em benefício da causa:

  • Pesquisar se há alguma biblioteca pública ou comunitária em sua cidade e contribuir com ela, seja na divulgação, com doações ou até mesmo sendo um mediador de leitura voluntário.
  • Prestigiar e divulgar ações independentes de incentivo à leitura e acesso ao livro, como forma de apoio para essa mensagem chegar mais longe.
  • Compartilhar em seus círculos sociais — seja presencialmente ou com o apoio do digital — suas experiências de leitura, dar dicas de livros ou algum conteúdo literário que possa provocar a curiosidade de não leitores.
  • Se você participa de algum clube do livro ou leitura conjunta, que tal convidar pessoas novas para participar? Às vezes basta um convite entusiasmado para o nascimento de um novo leitor.
  • Dentro da sua possibilidade acompanhe as notícias e debates sobre as legislações acerca do livro e do mercado editorial. Pois, para nos posicionarmos precisamos antes estar bem informados.

Vivemos em um país continental, com uma imensa diversidade de realidades. Ter acesso à cultura e educação não é um luxo, nem um privilégio, mas um DIREITO DE TODOS.

E enquanto cidadã e cidadãos que somos, podemos cobrar por essa garantia, bem como agir, dentro das possibilidades de cada um, a favor dessa causa.

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Adriana Ferreira
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Produtora de Conteúdo/Escritora. Meu gosto pela leitura me fez escrever! Perfil Profissional: conteudosdriferreira.com.br | Blog literário: conteudoraizes.com