Hip hop — o ativismo político que nasce na periferia

Tatiana Galvão
clubedaescrita.cc
Published in
5 min readApr 3, 2023

Ocupação de praças, escolas, redes de comunicação alternativas, acampamentos em áreas públicas, petições online, flash mob, games, redes sociais, ciberativismo. As novas formas de atuação política já não se limitam aos meios tradicionais. Em sua diversidade e amplitude, elas reorganizam e potencializam mobilizações, abrindo espaço para uma pluralidade de reivindicação.

E, tem sido no âmbito da cultura que muitos grupos ou minorias vão buscar o caminho da inclusão social. Práticas culturais, exatamente aquelas desqualificadas pela cultura dominante, passam a ser valorizadas e utilizadas como estratégias de sobrevivência e reivindicação de direitos.

Periferia em foco

Se durante muito tempo as classes populares no Brasil foram defendidas por lideranças e intelectuais que vinham de uma classe média universitária, ao longo dos anos 80 e de forma particular dos anos 90, vozes alternativas passaram a oferecer um discurso sobre o próprio grupo, ultrapassando as fronteiras geográficas e sociais, e ocupando o centro dos debates.

Dentro desse cenário e firmando-se a partir de parâmetros ideológicos construídos na periferia e voltados para a reflexão de sua realidade de miséria e exclusão, o hip hop emerge. Ele passa a ecoar o descontentamento da periferia por meio de produções artísticas que têm a comunidade e seus problemas como protagonistas.

Ele conseguiu, como poucas expressões artísticas, uma projeção capaz de ampliar suas fronteiras, geográfica e de classe, saindo da margem para ocupar um lugar de destaque no cenário cultural urbano do Brasil. Mesmo chegando ao mercado para ser consumido por outras classes sociais, o hip hop tem suas raízes fincadas na periferia e tem sido ela a grande inspiração para toda sua produção artística e para aqueles que dela vivem.

Além da dança, do rap, do grafite e do DJ, o hip hop ainda possui aquilo que seus militantes chamam de “quinto elemento”: a consciência. Consciência? Sim. É por meio dela que o indivíduo será capaz de produzir o aprendizado e usá-lo para transformar sua realidade.

Existe uma grande preocupação em oferecer condição e oportunidade para que a população jovem nas periferias não só consiga elevar sua autoestima, mas também desenvolva suas habilidades.

Estabelecer uma identificação com o público por meio de experiências compartilhadas pode significar a diferença numa reação positiva a ser desencadeada. Por isso, no hip hop, a figura do rapper é tão importante. É por meio dele que muitos outros falam, denunciam e questionam.

A periferia fala por si e de si

“Já sabemos que toda essa sociedade que está aí é planeada. Estamos cansados de as pessoas planejarem por nós também as soluções. Somos capazes de construir nossas soluções porque estamos lá. Está na hora de abandonar o ativismo de tutela”. (Preto Ghóez)

Embora vários rappers ou produtores envolvidos com o hip hop tenham recebido projeção midiática, alguns se tornaram não só referências, mas lideranças célebres. Dentre elas, Mano Brown e Ferréz se tornaram referências para a cultura e os trabalhos desenvolvidos nas periferias.

Mano Brown, líder do Racionais MC’s, é reconhecido como uma das principais liderança do hip hop nacional e considerado a voz da periferia pobre de São Paulo. Desde a década de 90, ele e os outros integrantes — Ice Blue, Edy Rock e KL Jay — ocupam uma posição ímpar, obtendo projeção nacional distante da grande mídia e a partir da conscientização negra.

Em mais de 30 anos de carreira, trouxeram à tona a narrativa daqueles que foram invisibilizados, e colocaram em evidência as contradições raciais e sociais da sociedade brasileira. Desde 1992, Mano Brown e o Racionais desenvolvem trabalhos nas comunidades, realizando palestras sobre temas como racismo e violência.

Mais recentemente, em dezembro de 2022, em um auditório lotado da UNICAMP, o grupo trouxe para o espaço ainda privilegiado da universidade jovens que ainda lutam para conseguir seu espaço e que têm encontrado nas letras dos raps do Racionais a inspiração e a motivação para não desistir. A atividade fez parte da disciplina Antropologia IV: Racionais MC’s no Pensamento Social Brasileiro. Mas, mais do que isso, foi naquele momento que trajetórias foram compartilhadas e conexões, reconhecidas.

Também ligado ao hip hop, Ferréz tem sido outra referência para os jovens da zona sul de São Paulo. Sua preocupação, recuperar a voz e a dignidade da periferia por meio da promoção e do fortalecimento do pensamento crítico de seus habitantes.

Ferréz já participou de vários grupos de rap, mas sua projeção tem se dado a partir da literatura, onde se tornou um dos mais respeitados autores da nova geração de escritores da chamada literatura marginal. A proposta é chegar em lugares que a grande mídia não chega. Ferréz defende que a periferia fale por si, buscando todos os espaços disponíveis e usando sua própria linguagem.

Além de abordar os problemas da periferia, seu objetivo é desenvolver as potencialidades existentes ali, de forma a garantir a autossuficiência da comunidade. Foi no Capão Redondo, um dos bairros mais violentos de São Paulo, que nasceu seu projeto 1daSul, uma marca voltada para construção de identidade e orgulho da periferia. A marca ganhou força e projeção, e as lojas ultrapassaram os limites do Capão.

Assim, a partir de diferentes formas de atuação e ao elaborarem seu próprio discurso, Mano Brown e Ferréz têm conseguido dar voz e visibilidade a favelas e periferias. A visibilidade e os resultados que obtêm, a partir do trabalho que realizam, têm sido significativos principalmente para uma parcela expressiva de jovens moradores de periferia.

Difícil não lembrar e associá-los ao conceito de “intelectuais orgânicos” tratado por Gramsci. Aqueles que, gerados por sua própria classe social, conseguiriam exercem a função de liderança moral e intelectual a favor da coesão e do fortalecimento da consciência dessa classe. O intelectual orgânico não lutaria pelo, mas com, pois estaria inserido na realidade social da qual se torna porta-voz e uma importante referência, tendo assim condições não só de compreender, mas também de sentir e, por isso mesmo, teria uma força maior de mobilização.

De diferentes maneiras, o hip hop é considerado uma das mais bem sucedidas expressões culturais da atualidade. Não apenas pela apresentação de uma estética que inova e rompe com os cânones, mas também por uma produção artística de cunho político, comprometida com a mobilização e transformação social.

Não espere fórmulas, unanimidades ou ações conclusivas. O hip hop se reinventa, encontra diferentes caminhos. As vozes se alternam, ganham novos formatos, novas cores. Mas o palco, o palco será sempre da periferia.

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