Liderança tem gênero?

Clube da Escrita
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6 min readDec 19, 2022

No mundo das corporações, a resposta é sim. Homens brancos cisgênero são os líderes. Não é novidade.

Foto Vidar Nordli-Mathisen em Unsplash

Apesar de pesquisas demonstrarem que as empresas que adotam práticas de diversidade — de gênero incluída — aumentam a colaboração, a inovação e alcançam melhores resultados de negócio, os avanços
nesse sentido são tímidos.

O que fizemos até aqui é insuficiente. É preciso fazer mais, melhor e diferente.

Em minha atividade profissional, facilito programas voltados ao desenvolvimento dos primeiros níveis na carreira de liderança e faço assessment executivo de C-Level, avaliação desses profissionais com o
objetivo de promover desenvolvimento e planejar a sucessão da alta liderança da organização.

Nos últimos 15 anos conheci muitos líderes, em geral de empresas nacionais, bem-sucedidas em seus mercados. Entre os recém promovidos à liderança de pessoas, principalmente quando a empresa atua no
setor de serviços, vejo homens e mulheres em salas de treinamento. Nas entrevistas de assessment da alta liderança, posso contar nos dedos ou mesmo lembrar dos nomes das poucas executivas mulheres que
conheci.

Os programas de desenvolvimento de novos líderes e os protocolos de assessment não fazem distinção de gênero quanto ao que é esperado da liderança “ideal”. Quaisquer que sejam os atributos em destaque,
como costumo dizer, nunca encontrei o super-homem ou a mulher maravilha. Conheci homens e mulheres reais, lidando com a tarefa de liderar pessoas e alcançar resultados nas organizações, em um
ambiente de negócios cada vez mais complexo. Na base, pessoas; no topo uma ou outra mulher — na maior parte das vezes liderando áreas de apoio, como Recursos Humanos ou Jurídico. Mulheres que
chegaram às posições mais altas dessas carreiras, contra todas as probabilidades.

E você que está lendo, o que vê quando olha à sua volta?

A história nos ajuda a entender essa realidade. Por muito tempo, o trabalho das mulheres ficou relegado ao ambiente doméstico — invisível e não remunerado. O trabalho nas organizações é para os homens, vistos
como os responsáveis por sustentar a si e à família. Não por acaso, segundo os dados da Estatística de Gênero do IBGE, com base na PNAD de 2019, as mulheres brasileiras dedicam em média 18,5 horas ao
cuidado com pessoas e às tarefas domésticas (diante de 10,4 horas semanais dos homens); trabalham em média 54,3 horas semanais entre o trabalho remunerado e os cuidados com a casa (para os homens são 51,2
horas semanais em média) e ganham em média 77% dos vencimentos de homens, apesar de terem em média um nível de escolaridade superior. Entre a população de 25 anos ou mais, 19,4% das mulheres têm
ensino superior completo (diante de 15,1% dos homens).

Mesmo representando pouco mais da metade da população total no Brasil (51,1%), as mulheres estão sub-representadas. Seja quando olhamos para sua presença no Legislativo federal (17% de mulheres no Senado;
18,5% na Câmara, no mandato que se inicia em 2023), seja quando olhamos para as posições de liderança nas empresas. A situação fica ainda pior se consideramos mulheres negras, lésbicas, trans, com deficiência.

Várias formas de dominação e discriminação sobrepõem-se umas às outras. O recém-publicado “Women in the Workplace 2022”, estudo conduzido anualmente em parceria pelo LeanIn.org e Mckinsey & Company desde 2015, pode nos ajudar a pensar sobre o assunto, ainda que trate do mercado corporativo americano.

Nos EUA, o problema começa no fenômeno denominado “degrau quebrado”: para cada 100 homens promovidos ao primeiro nível de liderança, apenas 87 mulheres são promovidas. O estudo aponta que
homens superam mulheres desde a base, tornando mais difícil alcançar a equidade de gênero à medida que avança a progressão na carreira de liderança.

  • elas aspiram progredir na carreira tanto quanto homens, mas enfrentam ventos contrários mais fortes — tais como terem sua qualificação para o cargo questionada ou serem tomadas por alguém mais júnior, com mais frequência do que os colegas homens nas mesmas posições;
  • estão mais sobrecarregadas e são menos reconhecidas em comparação com homens do mesmo nível;
  • procuram culturas corporativas e ambientes de trabalho que valorizem de fato a flexibilidade, o bem-estar e a diversidade, equidade e inclusão (DEI)

Em tecnologia e engenharia, que nos EUA são as áreas em que os empregos mais crescem e que têm os melhores salários, a representação relativa de mulheres, comparada a 2018, ficou ainda menor. Mulheres líderes nestas áreas têm duas vezes mais chance do que as demais de serem “a única mulher na sala”. A próxima geração de jovens líderes mulheres prioriza ainda mais ambientes de trabalho onde encontrem equidade, suporte e inclusão. Empresas que não agirem sobre esses aspectos terão cada vez mais dificuldades de atrair e reter essas profissionais, perpetuando o processo de falta de equidade.

E você, o que observa em sua organização?

Na empresa em que você trabalha, o primeiro degrau também está quebrado? Há mais mulheres líderes pedindo demissão? As novas contratações para as posições de liderança — através de recrutamento interno ou externo — estão atraindo mulheres, que concorrem às vagas em condição de igualdade com os homens? O que está inibindo a entrada e o avanço de mulheres em carreiras específicas e nas organizações em geral?

O estudo também ressalta a importância dos gestores em formatar a experiência de trabalho dos funcionários em geral, e das mulheres em especial. Elas valorizam líderes que as apoiam na gestão de sua
carga de trabalho e demonstram interesse por suas carreiras. As líderes mulheres fazem mais em comparação com homens no mesmo nível, em relação a apoiar o bem-estar dos funcionários e a promover
diversidade, equidade e inclusão (DEI), o que melhora a satisfação e retenção de profissionais em geral. A maioria das empresas, porém, não reconhece ou recompensa formalmente esse trabalho.
E você que está lendo, como se sente em relação a este aspecto?
As organizações, tão ávidas por talentos, seguem inibindo e prescindindo dos talentos das mulheres, em especial quando se trata de progressão na carreira de liderança.

Apesar da legislação pela equidade de gênero e de ações afirmativas em curso em muitas empresas, a mudança tem sido extremamente lenta. A análise do “Women in the Workplace 2022” conclui que é preciso colocar mais mulheres na liderança e manter as líderes que já estão nas organizações, indo além das práticas comuns adotadas. Políticas e programas apenas para cumprir o check list não só não funcionam como ainda podem gerar resultados negativos. As organizações que estão se saindo melhor em termos de equidade de gênero em relação às empresas em geral vão além do básico. Adotam benefícios e programas de
desenvolvimento de carreira voltados especificamente para mulheres / mulheres negras; monitoram e divulgam publicamente métricas de diversidade e de representatividade de mulheres nos níveis seniores de
liderança; promovem treinamentos sobre diversidade e equidade, sobre gestão do trabalho remoto/híbrido, preferência de muitas mulheres.

É preciso lidar com aspectos sutis — ou nem tanto — da questão. Como quando mulheres em posição de liderança são questionadas sobre suas qualificações para o cargo, tomadas por alguém mais júnior, têm sua fala interrompida pelos colegas homens ou veem esses colegas ficarem com o crédito por ideias que tiveram. Ou ainda como quando as próprias mulheres acabam sobrecarregadas, ao dedicar tempo e energia para participar de grupos para ajudar a empresa a endereçar as questões relacionadas à equidade de gênero, sem recompensa por isso.

Se a (in)equidade de gênero nas organizações decorre da combinação de múltiplos fatores, romper o processo requer que trabalhemos em várias frentes, com visão sistêmica. Entendo que é preciso agir “de fora para dentro”, através de legislação, políticas públicas, programas e iniciativas das empresas que nos possibilitem avançar na sociedade em geral e nas organizações em particular. É preciso também agir “de dentro para fora” no nível dos indivíduos e das organizações — através do trabalho individual, de todas as pessoas, de autoconhecimento e autodesenvolvimento contínuos, bem como do trabalho coletivo, de evolução da cultura organizacional.

O que fizemos até aqui é insuficiente. É preciso fazer mais, melhor e diferente.

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Escrito por Celina Freitas

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