HOMECOMING + AQUILOMBAMENTO

Victor Lima
CLUBE DE LEITURA PRETA
6 min readJun 11, 2020

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Por que o Homecoming é um artefato cultural tão importante? Como ele se relaciona com o conceito de Aquilombamento?

Nos dias 14 e 21 de abril de 2018 Beyoncé subiu ao palco do Coachella, como primeira mulher negra a ser headliner do festival, 10 meses após dar a luz aos gêmeos Sir e Rumi. Sem dúvida foi um dos maiores feitos de sua carreira. Poderoso. Memorável.

Contudo, surpresa maior foi quando, no ano seguinte (2019), o documentário HOMECOMING foi lançado na plataforma de streaming Netflix, revelando detalhes criativos e pessoais por trás do espetáculo. E é esse documentário, especificamente, que nos permite uma conexão com a ideia de aquilombamento que move o nosso clube de leitura e tem/deve ter impacto direto em nossas vivências.

Muitos intelectuais contemporâneos compreendem a importância dos quilombos como potentes organizações revolucionárias na história racista das Américas. Um destes intelectuais foi Abdias Nascimento (1914–2011), teatrólogo, ator e escritor que debateu profundamente as contradições da “democracia” brasileira e a luta do povo negro por autonomia e equidade.

Em linhas gerais, o quilombo era/é o espaço onde os africanos e africanos diaspóricos exercem o resgate de suas raízes e ancestralidade, por meio da tradição, para estruturar o presente e as estratégias de vida e sobrevivência. Esse espaço é plural, matrigestor e potencializado pela liberdade de vozes pretas. É a ideia de comunidade que move as subjetividades do povo preto. É a vida conectada com a natureza. É constituição de pessoa que só é possível no convívio com outras pessoas. É a experiência.

Neste espaço, a afrocentricidade domina os hábitos sociais, afetivos, econômicos, manutenção da autoestima, da estética e do amor. Neste espaço, também há o resgate de nossos símbolos de poder.

TÁ, MAS O QUE ISSO TEM A VER COM BEYONCÉ E O DOCUMENTÁRIO DELA LÁ?

Vamos pensar no resgate dos símbolos de poder no nosso povo africano.

Nefertiti:

A homenagem à rainha kemetiana (egípcia) Nefertiti é um dos maiores símbolos do espetáculo. Nefertiti foi uma das figuras políticas mais importantes do Kemet (Egito).

Ícone de beleza, líder bélica, responsável pela libertação de seu povo e por uma enorme revolução espiritual: devoção ao deus Áton, ou o disco solar.

A pirâmide:

A pirâmide é outro poderoso e espiritual símbolo kemetiano. Significa a ascensão, elevação, o poder da vida sobre a morte. As pirâmides simbolizam a própria existência.

Brasão com homenagem a símbolos africanos e ao Partido dos Panteras Negras.

Segundo o jornalista Joselicio Junior, “O aquilombamento é uma necessidade histórica, é um chamado, uma reconexão com nossa ancestralidade para atuar no presente, é construir esperança, é construir força […]”. Deste modo, é preciso que o povo preto diaspórico se reconecte com seu passado, compreendendo as tecnologias e filosofias de nossos antigos e mais velhos, para/na manutenção do(s) sentido(s) da vida e (re)construção do que é tempo e cultura, num ocidente pensado para os brancos. É uma manobra de respeito a nossas subjetividades, de dominação e reafirmação. É não apenas sobreviver, mas viver. É autocuidado e ORGANIZAÇÃO.

O show é arrebatador, mas os pontos altos do filme, dirigido pela própria Beyoncé, também estão nos diálogos e cenas de construção do espetáculo. A artista aponta que queria que todas as pessoas envolvidas não estivessem engajadas apenas em um espetáculo excelente, mas em todo o processo.

A orquestra marcial que domina a pirâmide é formada completamente por músicos negros, numa proposta que arremete às fanfarras das grandes universidades negras norte-americanas. A maior parte dos dançarinos, ou quase todos eles, são pretes, com diferentes corpos, diferentes estilos, com diferentes vivências.

O próprio título do filme é uma referência direta à festa Homecoming, que naquela cultura, é o momento em que os estudantes se reencontram para celebrar os tempos acadêmicos, para celebrar O PASSADO.

Esta percepção, esta vibração, no show, é evidenciada na conexão com o público. O que é bastante curioso e importante. O Coachella é um festival famoso, mas majoritariamente branco. Contudo, basta uma boa olhada em algumas cenas do filme que experienciamos uma festa e uma alegria que nos abraça demais, e que nos é familiar.

Há, ainda, um poderoso resgate de vozes no filme. Frases e reflexões de artistas e pensadoras negras que se misturam com as cenas. Nina Simone, Toni Morrison, Alice Walker, Maya Angelou, Audre Lorde, Chimamanda Ngozie Adichie e mais.

Relembrar as palavras de nossas heroínas e heróis é vital para continuidade de um ciclo que funciona num equilíbrio delicado e necessário.

No início do show, pouco após cantar Freedom, uma canção potente e muito símbólica do álbum Lemonade, Beyoncé entoa Lift Ev’ry Voice and Sing, considerada o hino negro norte-americano. Formation vem em seguida, canção que possui o clipe mais premiado da História, no qual Beyoncé denuncia a violência policial e a negligência governamental com a população mais pobre da gótica Nova Orleans.

Há muita troca no documentário, muitas interlocuções. Essa troca gera cura e empatia. É preciso que a gente fale, é preciso que a gente protagonize situações ante um histórico de silenciamento de pessoas pretas.

Apesar de tudo, é relevante afirmar que o HOMECOMING não é um artefato cultural que abarca toda a população negra no mundo, não é representativo para todos. Possui elementos culturais de um contexto de agrupamento negro bastante específico (estadunidense). Porém, isso não limita o olhar. É possível projetar a necessidade de resgate dos nossos próprios valores, por meio de nós mesmos.

A nossa grandeza não está em reivindicar dos brannkks que eles parem de nos matar. Nossa grandeza habita no que é intimamente nosso e na urgência de um rompimento com bases brancas e ocidentais. Deixem que os brancos cuidem de si. Eles possuem uma demanda em mãos; discutir o próprio racismo, o racismo de cada dia e os seus lugares de privilégio na pirâmide social.

MAS NÃO NA NOSSA PIRÂMIDE!

Nossa pirâmide é lugar de elevação e resgate dos nossos próprios deuses, da nossa própria espiritualidade e lugar neste mundo.

É nessa manobra de aquilombamento que cuidamos de nós mesmos, dos que sempre estiveram ao nosso lado, da nossa família, amigos. Reavivando amor, beleza, arte, ternura, leveza, vitória e glória pelos nossos próprios enquadres, pelos nossos próprios olhos.

É no quilombo que acendemos e ascendemos o sol do outro, no ocidente que tenta nos desumanizar e tirar nossa dignidade.

É no QUILOMBO que abraçamos e construímos nossa própria grandeza. Contudo, sempre mantendo os pés bem fincados no chão, compreendendo o nosso lugar no universo e a sabedoria dos dias.

O conceito de AQUILOMBAMENTO não é citado no documentário, mas é importante que transcendamos o olhar e nos inspiremos em bons exemplos para criar espaços próprios e projetos aqui. Espaços pretos. Espaços feitos por nós para nós.

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