Lidialopees
CLUBE DE LEITURA PRETA
5 min readJun 29, 2020

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VIVÊNCIAS, REFLEXÕES E UMA DOSE DE BELL HOOKS

Quando eu recebi o convite para compor esse texto, eu senti uma mistura de animação e de medo. Uma mistura de sensações. Animação em falar sobre/do meu povo preto; medo pela responsabilidade de escrever sobre o clássico livro Ain’t I a Woman? (E eu não sou uma mulher?) da escritora feminista negra bell hooks. Essa minha escrita sobre o livro é atravessada pelas falas da professora, feminista negra, Doutora Núbia Regina, que no dia 18 de junho de 2020, mediou o encontro online do Clube de Leitura Preta. Esse texto, também, é repleto de reminiscências e de experiências minhas, como mulher negra.

(bell hooks)

Foco, aqui, especificamente no terceiro capítulo: “O imperialismo do patriarcado”. Escolhi esse capítulo, não de modo arbitrário, mas por este me tocar em diversos pontos e, também, por discutir de maneira mais profunda as relações entre o machismo/patriarcado e o sexismo dos homens brancos e pretos; como as mulheres pretas se relacionavam e ainda se relacionam com estes fatores e como eles influenciaram e influenciam, diretamente, na vida cotidiana das mulheres negras.

A mulher negra foi construída historicamente para ocupar a posição de dona de casa, mas não como a rainha do lar; visto que esse título de rainha já era destinado às mulheres brancas. Desse modo, a ideia de que a mulher preta é a dona de casa se torna uma espécie de mito do matriarcado, uma maneira encontrada pelas próprias negras para se encontrarem ou se encaixarem na sociedade patriarcal e capitalista; não descartando que também foi algo imposto às mulheres negras a ocupação do lugar de dona de casa.

Um bom exemplo brasileiro para pensar isso é Tia Nastácia, personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo, mulher negra carinhosa, subserviente, que cuida de tudo e de todos. Em contrapartida a esse mito, há aquele do “patriarcado negro”, que seria a ideia de que o homem negro é o chefe da família. Estes mitos parecem simples se não olharmos cuidadosamente e com atenção. Sem o olhar cuidadoso não seriamos capazes de perceber as implicações destas estruturas na vida afetiva das mulheres negras, uma vez que as mesmas exaltavam e supervalorizavam a presença de um homem em casa, pois o matrimônio era, e ainda é, algo difícil para mulheres não brancas. O que ocorre, na maioria das vezes, é que mulheres pretas se anulem, tornem sua vontade obsoleta, dentro de um relacionamento, para valorizar a presença masculina.

Aconteceu com a minha mãe essa manobra da anulação de si, de inferioridade e de insuficiência. Minha mãe tinha medo de que meu pai terminasse com ela e a deixasse com três crianças. Desse modo, quando meus irmãos e eu ainda éramos pequenos, ela foi uma mulher silenciosa/silenciada e subserviente. Lembro-me de que quando eu ainda era adolescente, ela decidiu voltar a estudar. O estudo, a tomada de consciência de que ela é capaz, fez com que ela se tornasse outra mulher. Ou melhor, a impulsionou a perceber a mulher que ela nasceu para ser; suficiente, capaz e linda.

Estes mitos foram/são um dos fatores responsáveis pela indução e fomentação dos casamentos inter-raciais, entre, principalmente, os homens negros com mulheres brancas. Os homens negros optam pelas mulheres brancas para o matrimonio, como foi pontuado pela Dr. Núbia Regina, não apenas por considerarem estas mais bonitas ou mais adequadas; é isso também. Mas há um ponto mais importante; o homem negro casa-se com uma mulher branca pensando em seus filhos, para que estes nasçam de pele mais clara ou até mesmo de pele branca (produto intrínseco do nosso racismo de cada dia). Pontuo, aqui, como exemplo, minha própria experiência. Ouvi esses dias do meu irmão mais velho, negro e casado com uma branca, a preocupação de que seu primogênito tivesse a pele escura. Meu irmão continuou dizendo que sofreu racismo e não queria que o filho passe pelo mesmo sofrimento. No entanto, ele não se deu conta que ao desejar isso ele estaria contribuindo para o apagamento da nossa raça. Isso é algo extremamente preocupante. Isso é o que o racismo faz com o meu povo preto. O racismo/racista nos inferioriza ao ponto de nós mesmos não desejarmos ter filhos negros.

Por outro lado, os homens brancos, em sua maioria de classe média, ou classe média alta, não optam por mulheres negras para o casamento, pois a sua geração poderá nascer de pele negra e isso “destruiria” a hegemonia branca. Se observarmos há mais homens negros casados com mulheres brancas do que homens brancos casados com mulheres negras.

Além disso, numa sociedade racista como a que vivemos, cheia de dinâmicas de poder baseadas em raça, a mulher negra que se relaciona com o homem branco pode estar sempre numa posição bastante desconfortável. Naquela relação em que o homem branco se casa com uma negra, a mulher pode ser vista como interesseira, ou seja, a mulher negra casou-se com o homem branco por interesses financeiros. Para além disso, o homem branco é muitas vezes compreendido como um troféu para aquela mulher negra, um prêmio.

O homem negro que se casa com uma branca é bem visto e aceito pela sociedade, mas o homem branco que se casa com uma negra, não.

Por fim, as mulheres brancas são sempre preferidas quando o assunto é matrimônio, construção de família e filhos.

Então, e as mulheres negras, Lídia?

A mulher negra foi historicamente e socialmente construída para ser objeto de prazer dos homens brancos e, posteriormente, isso se estendeu aos homens negros. Estupros aconteciam desde o período da escravidão; nada mudou com a “libertação” do povo negro. As mulheres negras, enquanto trabalhavam em casas de brancos como empregadas domésticas eram estupradas constantemente pelos homens brancos, e algumas esposas brancas não se importavam com as atitudes impróprias dos maridos — muitas vezes até incentivavam, como é pontuado por Bell Hooks. Desse modo, a mulher negra foi, nestes processos, sexualizada e objetificada, sendo escolhida, comumente, apenas para relações sexuais casuais. O matrimônio para uma mulher negra se tornou algo bastante conflituoso. O casamento tradicional como o é, carrega uma série de atravessamentos machistas. Nele, a mulher negra sempre buscou ser uma “mulher plena”, como pontuou a Drª. Núbia Regina, durante a mediação do encontro do Clube de Leitura Preta. Mas o que é/seria ser uma mulher plena? Ser plena seria, por exemplo, se assimilar ou se igualar de modo mimético aos jeitos, atitudes e posturas das mulheres brancas. Ações como alisar o cabelo é um dos exemplos clássicos de tentativa de se assemelhar à mulher branca.

Aspectos como: feminilidade, docilidade, gentileza foram atribuídos e sempre estiveram relacionados às mulheres brancas. Em contraposição, estavam as mulheres negras com aspectos como: força bruta, hostilidade, gênio/personalidade forte. Esses estereótipos estão presentes em filmes, novelas, séries, fazendo com que nós mulheres negras pensássemos que isso fosse algo normal. Esses estereótipos marcaram e de certa forma moldaram a vivência da mulher preta na sociedade. Como é afirmado por bell hooks, o machismo não é a única força opressora da mulher negra. A mulher negra dentro do movimento feminista milita por outras questões que não são apenas sobre o machismo/patriarcado, como é a militância da feminista branca. A mulher feminista negra milita contra o machismo, o sexismo e o racismo. É uma luta tripla, cotidiana e constante.

Lídia Santos Lopes Pinto

Mestranda em Letras: Cultura, Educação e Linguagens — UESB

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Mulher negra, pesquisadora e cientista. Apaionada pelas Artes. Licenciada em Letras Modernas- UESB. Mestranda em Letras: Cultura, Educação e Linguagens