As micro-revoluções e o papel do design para o Movimento de Transição.

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7 min readFeb 12, 2020

Por Livia Fauaze*

Há alguns anos venho me dedicando a olhar para o futuro pensando na frugalidade, nas relações de confiança e na potência do desenvolvimento local através dos pequenos negócios. Foi essa inquietação que me levou a conhecer Ernst Friedrich Schumacher, e a estabelecer de imediato uma conexão com seu pensamento descrito no livro Small is Beautiful (Ser pequeno é lindo), traduzido como “O negócio é ser pequeno” na edição em português.

Do Schumacher eu segui minhas pesquisas e estudos até encontrar o Movimento de Transição, idealizado por Rob Hopkins na cidade de Totnes, na Inglaterra, e que está se espalhando rapidamente por vários lugares para além da Europa.

Para Hopkins essa transição da sociedade está baseada em quatro suposições chaves:

1. É necessária uma drástica redução de consumo de energia;

2. As cidades e comunidades não estão preparadas adequadamente para uma possível crise de petróleo e energia;

3. É preciso agir imediatamente de modo coletivo;

4. Trabalhando coletivamente, de modo criativo e proativo, é possível construir uma sociedade sustentável.

O Movimento inspira a pensar sobre a maneira como produzimos e consumimos os recursos ambientais, ao passo que conscientiza sobre a necessidade de adotar ações imediatas em prol da regeneração do meio ambiente como um todo. Ao mesmo tempo, salienta a importância de promover a adoção de outras formas de medir a qualidade de vida, incluindo as perspectivas cultural, espiritual e do bem-estar social. Do ponto de vista do contexto local essa é uma forma de tornar as comunidades mais resilientes e preparadas para agir diante de uma catástrofe.

O Movimento de Transição é fundamentado nos princípios da Permacultura, termo criado pelos autores e pesquisadores Bill Mollison e David Holmgren na década de 1970. Os autores definem Permacultura, ou “cultura permanente”, como “a aplicação do pensamento sistêmico e de princípios de design que sirvam de base para implementar […]planejar, estabelecer, manejar e aperfeiçoar os esforços empreendidos por indivíduos, famílias e comunidades rumo a um futuro sustentável.”

É justamente entre as décadas de 1960 e 1970 que começam a surgir os primeiros manifestos de contracultura, em função das consequências negativas da globalização, da industrialização, do capitalismo e do consumismo. Em função destes primeiros indicadores da crise ambiental é que se dá o que muitos chamam de “primeira grande onda da moderna conscientização ambiental”.

Daquele período para os dias atuais, apesar de tantos esforços, a situação ambiental do planeta se agravou. Por isso que, ao observamos o zeitgeist, isto é, a atmosfera da nossa época, veremos um grande fervor criativo, em que os aspectos globais impulsionam diretamente um crescente interesse na atuação e na busca por soluções de impacto social e ambiental. Pessoas das mais variadas formações, habilidades e competências estão mobilizadas em torno de causas e problemas das suas comunidades, ruas, bairros e até de cidades inteiras.

As micro-revoluções tratam exatamente dessas pequenas e emergentes iniciativas, executadas por pessoas que considero como lideranças criativas. Lideranças que estão promovendo a transição de um modelo mental ao nível das comunidades, através de soluções inovadoras, da criação de novas oportunidades e da constituição de um ecossistema participativo. Tais ações partem, em muitos casos, da margem da sociedade para o seu centro, numa leitura aproximada do que seria o “de baixo para cima” do ponto de vista organizacional.

Créditos: Imre Tömösvári em Unsplash.

Em todos os continentes é possível observar a ascensão do empreendedorismo social. Mas, se olharmos para a história da humanidade, veremos que esses mobilizadores sociais sempre existiram. O que difere na atualidade é que há um número crescente de pessoas que compreendem a necessidade de uma drástica e rápida mudança, e que se dedicam a empreender socialmente, encarando isso como uma verdadeira vocação.

A conscientização promovida, entre outros fatores, pela revolução nas comunicações possibilitou que mais pessoas tivessem um conhecimento mais abrangente e real do mundo, ao passo que proveu ferramentas poderosas de interlocução para organizar ações e esforços dos cidadãos

Desse modo as pessoas têm mais acesso às informações sobre a degradação do meio ambiente, sobre a pobreza e a desigualdade, sobre a ineficiência ou falta de um sistema de ensino. Por outro lado, têm acesso a histórias de lideranças locais bem-sucedidas que transformam a realidade em que vivem, tornando-se inspiração para as outras pessoas.

Essas são algumas possíveis razões para vermos hoje pessoas ao nosso redor fazendo a transição de carreira em busca do seu propósito de vida e da sua bem-aventurança. Sendo convocados para fazerem a diferença. Sendo convocados a mudar o pensamento de um modelo egocentrado para ecocentrado.

Nesse complexo cenário o design vem assumindo novas perspectivas e um novo lugar na sociedade. Seu papel há muito vem sendo questionado, mas agora é possível observar sua mudança proeminente. A primeira escola formal de design, a Bauhaus, surge na Alemanha do pós-guerra. Desde então, o design foi fortemente utilizado, entre outras coisas, para atender à indústria, ao capitalismo e ao consumismo. Trazendo muitos benefícios, mas ao mesmo tempo criando produtos que nem os próprios consumidores sabiam que precisavam e/ou desejavam.

Esse modelo segue vigente até os dias de hoje, porém, o emergente pensamento contemporâneo do design se utiliza da sensibilidade, de metodologias e ferramentas para projetar ideias e resultados com valor ambiental, social e cultural.

Cabe compreender o design enquanto uma disciplina projetual e observar que todos na sociedade, em algum momento, já projetaram algum tipo de solução. Isto é, as pessoas possuem o potencial criativo nato de resolver problemas. Percebendo ou não, diariamente projetam em seus negócios, em suas residências, em seus bairros e em suas vidas de modo geral.

Não é o conhecimento, nem as metodologias ou as ferramentas que farão a diferença, mas a intenção e a motivação com que nos dedicamos à construção de um mundo sustentável. O que se espera do papel do design na contemporaneidade é de, através do conhecimento, propor soluções centradas no ser humano, co-criando de modo mais responsável. Não estamos tratando aqui de soluções mirabolantes, mas de soluções práticas para problemas reais.

Ao olharmos para esse ecossistema vemos uma série de iniciativas que fazem com que a mágica aconteça. Tais iniciativas não estão focando a energia em serem as maiores empresas do mundo, elas são dirigidas a trazer um real impacto positivo para as suas comunidades. O que nos provoca a pensar e a mudar nosso modelo mental em relação aos referenciais de sucesso e desenvolvimento estabelecidos, mas que já não fazem mais sentido.

Lideranças criativas, muitas vezes pouco conhecidas no âmbito nacional, têm desenvolvido soluções que tratam da mobilidade, da alimentação, da justiça social, conscientização sobre o consumo e tantas outras pautas de interesse coletivo.

“Gente simples, fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças extraordinárias.” Provérbio africano

Poderia fazer uma extensa lista mas indicarei abaixo algumas delas: Aceleradoras como a Vale do Dendê (BA), capacitando e difundindo conhecimento; plataformas de crowdfunding como a Benfeitoria (RJ), propiciando o acesso ao capital de giro e inicial; as lojas colaborativas, como a Somos Coletivo Criativo (BA) e a Guapa (BA), que estimulam o fortalecimento dos pequenos negócios; o Canteiros Coletivos (BA) que ocupa canteiros públicos e os recupera, criando um ambiente de convivência e integração entre as pessoas e a natureza; a Compostar (BA) que incentiva a implantação de composteiras domésticas; e a Casa Amarela (BA), um espaço urbano de práticas de permacultura.

Espaço da Somos Coletivo Criativo, em Salvador.

A criatividade e as habilidades de design são recursos importantes para o movimento de transição da sociedade. Dessa maneira, as micro-revoluções podem vir a potencializar e dar maior consistência às suas ações através do design, seja no desenvolvimento da ideia e do processo, no desenvolvimento do produto ou serviço, na comunicação e também otimizando os recursos disponíveis.

Sem sombra de dúvida, um dos maiores desafios dessas micro-revoluções é encontrar um caminho para a monetização do negócio e achar o equilíbrio entre o capitalismo — com todas as suas complexidades — e os impactos positivos desejados. Por isso as novas economias são tão importantes: para nos darmos conta de que temos outros caminhos. Não mais é necessário reproduzir modelos do passado se podemos criar novos modelos, que façam mais sentido diante da expansão da consciência. Ao invés de esperar por editais e subvenções que financiem sua ideia podemos usar instrumentos da economia colaborativa, como o crowndfunding, por exemplo.

É importante destacar que necessitamos compreender e lidar com o fato de que é evidente a coexistência de iniciativas, paradigmas e interesses divergentes. Esse não é um movimento hegemônico, apesar da sua notoriedade e relevância diante de um possível colapso da humanidade. Nem todas as pessoas desejam ser uma micro-revolução ou ter um negócio de impacto socioambiental. Entretanto, para aqueles que querem desafiar as previsões e mantêm sempre um olhar positivo e otimista sobre o futuro, como eu, o momento é favorável.

Livia Fauaze é Mestre em Artes Visuais, Designer, Turismóloga e especialista em gestão de negócios. À frente da Nonstop, escritório de design estratégico, se dedica a promover o aumento da criatividade, inovação e competitividade de pequenos e emergentes negócios criativos e de impacto socioambiental, orientando-os para uma sociedade em transição.

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