Carta para o saneamento básico na Maré

Gilberto Vieira
cocozap
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8 min readMay 15, 2019

Documento elaborado a partir do Encontro Saneamento da Maré de abril de 2019

foto: Thais Cavalcante

Este documento apresenta de forma resumida e objetiva, um diagnóstico das demandas prioritárias acerca do saneamento básico do Complexo de favelas da Maré. A carta foi elaborada a partir do Encontro Saneamento da Maré realizado no dia 13 de abril de 2019 na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna. O evento reuniu cerca de 60 pessoas entre moradores, organizações da sociedade civil, ativistas e especialistas num esforço de sistematizar demandas e soluções para quatro eixos centrais que dimensionam os problemas decorrentes da precariedade do sistema sanitário do bairro: abastecimento e manejo da água; esgotamento e Baía de Guanabara; lixo e segurança pública; saúde e bem estar.

O Encontro foi realizado a partir da articulação do data_labe, Redes de Desenvolvimento da Maré e Casa Fluminense durante o projeto Cocôzap: mobilização, mapeamento e incidência para saneamento básico em favelas. Entre os meses de setembro e dezembro de 2018, o projeto iniciou um mapeamento de queixas relacionadas a lixo e esgoto enviadas por moradores através do Whatsapp. Promoveu também a articulação entre serviços públicos, grupos ativistas e realizou pesquisas sobre a gestão do saneamento. Os resultados do projeto apoiado pelo Fundo Socioambiental Casa podem ser vistos aqui: cocozap.datalabe.org

O Objetivo desta carta é compartilhar o que foi construído durante o Encontro e servir como ponto de partida para uma articulação cidadã centrada no tema do saneamento básico no território. Historicamente, os moradores da Maré são os responsáveis pela conquista de direitos básicos relacionados ao saneamento como abastecimento de água, coleta de lixo, pavimentação das vias e esgotamento. A intenção é fortalecer essa tradição e avançar na luta por saúde, bem estar e dignidade das moradoras e moradores de favelas. Acreditamos que este é um passo para a construção coletiva de uma articulação permanente em torno das demandas aqui estabelecidas.

foto: Douglas Lopes

Esgoto e Baía de Guanabara

Neste Grupo de Trabalho (GT) foram levantados pontos acerca dos acúmulos de lixo em certas áreas da favela, gestão pública do saneamento, transbordamento de esgotos e enchentes, os valões de esgoto e as consequências para a Baía de Guanabara e ainda, descarte de óleo e mobilização comunitária. Os temas mais discutidos foram:

  • Retomada e efetivação dos Planos de Saneamento Estadual e Municipal. Para isso é necessário garantia de recursos públicos e monitoramento de obras e ações inacabadas. No caso da Maré, é urgente a construção do tronco coletor para a Estação de Tratamento Alegria. É preciso ainda discutir a centralização da gestão do saneamento nas favelas que segue fragmentada entre diferentes instâncias.
  • Desenhos e estratégias de mobilização comunitária envolvendo movimentos juvenis, ativistas locais, ONGs, postos de saúde, escolas e moradores em geral. Foram sugeridas ações de campanhas e eventos como um Dia D anual, exposições, mutirões e maior divulgação e atuação do número do Cocôzap, contribuindo para disseminação de informações e campanhas educativas.
  • Articulação com instituições acadêmicas do entorno como a UFRJ, FIOCRUZ e do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente do Ministério Público do Rio de Janeiro em ações de pesquisa e sensibilização de governo e sociedade a exemplo do Fórum Itinerante do Canal do Cunha promovido em 2017 e o Abraço na Maré realizado na Praia de Ramos em 2000.
  • Discutir a terceirização do serviço da CEDAE na região, que não atende as necessidades dos moradores. Faltam equipamentos e algumas áreas que pagam a taxa social não são atendidas pela Companhia. Maior promoção de articulação e aproximação dos funcionários da CEDAE do posto Maré com os moradores e instituições locais para atendimento de demandas.
  • Promoção de ações do poder público e mutirões comunitário no entorno dos valões para despoluição e criação de áreas verdes como ilhas flutuantes que auxiliam no tratamento de esgoto a partir de plantas e raízes.

Abastecimento de água e manejo de água pluvial

Neste GT foram abordados temas relacionados à distribuição de água, infraestrutura da rede de abastecimento, cultura de consumo da água, inundações, relacionamentos com a CEDAE e poluição dos valões. Os pontos mais discutidos foram:

  • O relacionamento dos moradores com a CEDAE é motivo de muitas reclamações. Nas associações de moradores, por exemplo, a maioria das demandas a serem atendidas são relacionadas à problemas ligados à Companhia. Uma das questões é o fato dos moradores não saberem os serviços da CEDAE aos quais têm direito, o que acarreta em cobranças indevidas ou resoluções individuais e autônomas de problemas coletivos.
  • Os processos de coleta, tratamento e distribuição da água são desconhecidos pela população. Principalmente no verão — período de intenso calor e desconforto no bairro, devido à precária infra-estrutura — é perceptível o desperdício da água pelas ruas. Nesse sentido, é importante um movimento de conscientização, educação e informação para os moradores que passe pelo histórico de luta do território pelo acesso à água; cultura do desperdício; direitos em relação aos serviços da CEDAE e alternativas de captação da água da chuva.
  • Em dias de chuva muitos pontos do bairro ficam alagados. As ruas que dão acesso ao Ciep Ministro Gustavo Capanema, por exemplo, ficam intransitáveis. Os estudantes e profissionais encontram dificuldades para entrar e sair. Crianças e idosos ficam expostos à lama, à água contaminada e há anos a situação se repete. O problema acontece pela pavimentação precária e falta de estruturas públicas de drenagem. Alguns moradores com melhores condições financeiras colocam um ralo na porta da casa, o que resolve parcialmente o problema. Alternativas sustentáveis podem auxiliar na drenagem urbana evitando enchentes, como por exemplo, os jardins filtrantes, que retardam o escoamento da água da chuva, as ilhas filtrantes que tratam a poluição dos rios e “valões” e a substituição do asfalto por pisos drenantes.
  • A falta sistemática do abastecimento de água é muito comum no território. Moradores passam dias sem água em casa, instituições como escolas e Clínicas da Família sofrem com a falta de abastecimento que muitas vezes é minimizada por iniciativas autônomas de alguns moradores, como a instalação de bombas hidráulicas. A Maré tem um sistema público de encanamento da década de 60 que não supre a demanda atual. Além disso, o sistema de abastecimento vigente não supre o crescimento urbano. É necessária a implantação de um novo sistema que contemple as atuais demandas e que leve em conta a expansão do bairro.

Lixo e segurança pública

Neste GT foram abordados temas que envolvem o trabalho da Comlurb e os problemas acarretados pelo acúmulo de lixo nas ruas, assim como os conflitos comunitários gerados pelo problema. Os principais pontos foram:

  • A Maré é maior do que 95% dos municípios do país e sua população cresce exponencialmente. Os serviços da Comlurb não têm investimento diretamente proporcional à demanda populacional. É preciso aumentar e melhorar o serviço de coleta por meio de equipamentos, número de garis e frequência.
  • Os locais com maior número de violações de direitos em relação a segurança pública são os que sofrem mais com os problemas do lixo. Experiências históricas demonstram que o cuidado maior com essas áreas impactam na diminuição da violência. Neste sentido é importante trabalhar para a transformação desses espaços como mutirões que podem ser realizados pela comunidade com apoio de equipamentos públicos.
  • O alto índice de lixo nas ruas gera a obstrução dos bueiros para o escoamento da água intensificando inundações e entupimento do esgoto. É urgente pensar alternativas de descarte do lixo produzido no cotidiano como lixeiras e caçambas públicas. Além disso, os horários de coleta não coincidem com o horário que os moradores colocam na rua, que por sua vez não conhecem os horários da Comlurb. É necessário fazer um diagnóstico sobre a estrutura dos serviços de coleta e compartilhar essas informações com a população.
  • Algumas soluções têm alto potencial de impacto para a resolução desses problemas e podem contribuir para a economia local. Uma delas é mapear e investir na articulação entre grupos e cooperativas de catadores e garimpeiros da Maré para a criação de Ecopontos enquanto alternativas para o descarte de lixo. A iniciativa pode diminuir os lixos nas ruas, servir enquanto dispositivo de educação para o descarte e consumo consciente e ainda gerar renda para esses trabalhadores. Outra solução é o estímulo à compostagem de lixo orgânico para utilização do composto em iniciativas de arborização e hortas urbanas.
  • O descarte inapropriado de óleo dos domicílios e comércios também é um problema no território. Implementação de ações que impulsionam as iniciativas de moradores que recolhem o óleo para beneficiamento devem ser incentivadas e também tem potencial de geração de renda.
  • Um ponto importante em ser abordado refere-se ao comportamento dos moradores em relação ao lixo. A cultura de descarte inapropriado, a naturalização da degradação do ambiente e a própria desvalorização do ambiente em que vivem — muito alimentada pela estigmatização reforçada pela sociedade — contribuem para que os moradores e comerciantes locais poluam o bairro de forma irresponsável. São urgentes e necessárias campanhas, atividades, informações e estímulos para uma transformação radical da cultura do descarte do lixo na favela. Resolver problemas infraestruturais pode ser insuficientes se o comportamento atual não for transformado e coibido.

Saúde e bem estar

Nesse GT foram discutidos os problemas de saúde e bem-estar da população decorrentes do déficit de saneamento, as estrutura de funcionamento do sistema de saúde pública no território e hábitos dos moradores relacionados ao saneamento básico. Os pontos mais discutidos foram:

  • Um problema recorrente e que impacta a saúde dos moradores é a proliferação de vetores transmissores de doenças. Em torno de 55% das demandas da Central de Atendimento ao Cidadão na Maré são relacionadas à proliferação de roedores. Além disso, temos altos índices de doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti.
  • Campanhas preventivas recorrentes são urgentes. Para além das campanhas de abrangência nacional, é preciso focar no trabalho de informação da população local de forma mais próxima e comunitária. Para isso são necessárias campanhas pensadas por moradores e integradas com os equipamentos de saúde. A inserção de moradores nas formações de agentes comunitários de saúde podem ser efetivas.
  • Melhoria na eficiência do atendimento das demandas nos postos de saúde e maior investimento em Clínicas da Família e na atuação dos agentes comunitários de saúde, que costumam ser mais eficientes para a implementação de medidas preventivas alternativas.
  • Espaços de ampla circulação como Escolas e Igrejas na Maré estão em áreas muito próximas a acúmulo de lixo, esgoto e expostos à vetores, sujeira e mau cheiro. São necessárias ações urgentes e definitivas que garantam que esses lugares sejam limpos e que impeçam a circulação de pessoas nos ambientes degradados.

É importante ressaltar que todos os pontos levantados nessa carta levam a um entendimento amplo da situação do acesso ao direito básico ao saneamento da população da Maré. O incentivo e articulação de mutirões, mais acesso a serviços públicos, maior interação entre moradores e poder público assim como impulsionamento e articulação de iniciativas já existentes devem ser entendidas de forma transversal e afetam no desenvolvimento pleno da vida das pessoas que vivem em territórios populares.

Maré, Rio de Janeiro, 13 de abril de 2019.

Assinam essa carta:

Adrielly dos Santos, Alex França, Aliciane Peixoto, Ariane Vitória, Carolina Galesva, Caroline Maria, Casa Fluminense, Cícero Matheus, Clara Sacco, data_labe, Dayane Vilela, Diogo Luiz, Douglas Almeida, Eliane Paix, Eloi Leones, Fernanda Costa, Gabriel Castor, Gilberto Vieira, Gilson Jorge, Hannah Vaconcelos, Helio Euclides, Helio Vanderlei, Iris Avila, Ivana Soares, Janaína Araujo, João Pedro, Joelma de Sousa, Jonas Willame, Julce Leandro, Juliana Cunha, Juliana de Jesus, Juliana Marques, Juliana Sá, Julio Vitor, Larrisa Amorim, Laura Mazzola, Leonardo Ader, Lorena Froz, Luisa Fenizola, Marcio Mundim, Maria Michele, Marlon Grangeiro, Mauganth Vieira, Maykon Sardinha, Orlando Lira, Raquel Ribeiro, Redes de Desenvolvimento da Maré, Ronaldo dos Santos, Rubya Pêra Gregório, Sérgio Ricardo, Shirley Rosendo, Thaís Cavalcante, Tito Cals, Valdenise Brandão, Vinicius Alves, Vitor Mihessen, Wallacy de Macêdo, Zé Alexandre.

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Gilberto Vieira
cocozap

Co-fundador do @data_labe, organização de mídia e pesquisa sobre favelas e periferias.