I Curso de Saneamento e Tecnologias Alternativas na Maré

Ruth Osório
cocozap
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4 min readMay 28, 2021

Entre os dias 22 de março e 04 de abril rolou o primeiro curso Saneamento e Tecnologias Alternativas- Caminhos Possíveis na Maré?. Com a proposta de fomentar uma reflexão coletiva sobre o contexto do saneamento básico no Complexo da Maré, o curso teve como foco as soluções que os próprios moradores criam para enfrentar seus problemas e as chamadas tecnologias alternativas de saneamento: sistemas descentralizados que tratam a água, esgoto ou resíduos e fazem suas disposição em local próximo de onde eles são gerados.

A realização do curso foi possível a partir da ponte criada entre a UFRJ e o Complexo da Maré. Em 2020, o Cocôzap começou a se reunir com diversas organizações: o Núcleo de Solidariedade Técnica (Soltec/UFRJ), Laboratório de Estudos Urbanos de Água (LEAU/UFRJ), Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento (ONDAS) e a Germinal A.T.E. Todas elas são vinculadas a professores e projetos da UFRJ que há anos extrapolam os muros da universidade e fomentam diversos olhares sobre a cidade. Dessa rede saíram muitos frutos, como a colaboração no Plano de Monitoramento Popular, lançado pelo Cocôzap em novembro de 2020, e também a ideia de realizar um curso voltado para discutir soluções em saneamento, diante de toda mobilização existente na Maré.

Essa proposta resultou em 4 encontros de formação maravilhosos, com a presença de 20 alunos, além de 6 facilitadores da equipe envolvida. A formação foi direcionada para moradores da Maré, mas também tivemos o prazer de receber pessoas de São Gonçalo, Duque de Caxias, Fonseca e até de Salvador.

Pensar em um curso de formação pautado em participação e mobilização em um ambiente inteiramente online foi nosso primeiro grande desafio. A ideia inicial de escolher coletivamente um espaço na Maré e realizar oficinas para implementação de uma tecnologia alternativa nesse espaço teve que ser deixada de lado, pelo menos por enquanto. Com isso, a gente focou em criar um ambiente online que estimulasse a participação. Apostamos na metodologia de divisão de grupos para discussões localizadas em todas as aulas, além do uso de formulário com perguntas que despertassem o tema da aula seguinte e um diário de bordo no qual os alunos podiam anotar suas percepções do encontros e materiais levantados na tarefa de casa: geralmente uma tarefa simbólica como perguntar para os pais/ parentes como era o abastecimento de água da cada antigamente.

Durante os 4 encontros nos reunimos para discutir cada um dos serviços de saneamento no contexto do Rio de Janeiro e da Maré, as tecnologias de tratamento existentes e formas alternativas, vislumbrando juntos caminhos possíveis para o problema sanitário no território. Falar de tecnologias alternativas para o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro não é tarefa fácil. De acordo com o SNIS 2019, o carioca consome, em média, 207 litros de água todos os dias. Se o morador da Maré acompanha esse consumo e 80% dessa água consumida vira esgoto, são cerca de 166 litros de esgoto gerados, todos os dias, por cada morador. Ou seja, os 140 mil habitantes da Maré têm o potencial de gerar 23 milhões de litros de esgoto por dia diretamente na Baía de Guanabara.

Diante de um número tão grande, parece contraditório tratar tecnologias alternativas de saneamento como solução para tratamento de esgoto, por exemplo. A realidade é que os sistemas descentralizados de saneamento dificilmente têm a capacidade de lidar com a carga total de esgoto, resíduos e volume de águas pluviais das favelas, além de não haver espaço livre para implementação dessas tecnologias para atender todas as casas da Maré.

Para resolver o problema sanitário na Maré, precisamos que a rede coletora de esgoto da seja ampliada, reformada e separada da galeria de águas pluviais; que os troncos coletores sejam ligados a Estação de Tratamento de Esgoto da Alegria, que funciona ao lado da Maré mas não atende a nenhum domicílio; que as coletas de resíduos sejam frequentes, atendam todo o território e a disposição desses resíduos seja adequada; e de inúmeras outros artefatos tecnológicos e tecnologias de gestão pensadas especialmente para o contexto das favelas.

É muito simbólico que a gente fale sobre tecnologias construídas coletivamente para solucionar problemas históricos em um território como a Maré, que tem sua história marcada pelas palafitas e pela autonomia dos moradores em construir suas próprias ruas e casas. Meu avô foi um dos nordestinos que chegaram em massa no começo da ocupação da Maré, encontrando uma favela bem diferente dessa que eu conheço hoje. Não tinha água encanada, luz, coleta de esgoto, banheiro, mas tinha muita força de vontade para criar um espaço que fosse deles. A casa que meu avô construiu é a casa que eu e minha família moramos até hoje, que também tem muito do meu pai e do meu tio em cada um de seus tijolos. O que a gente se propôs a discutir e entender coletivamente durante as aulas é que as tecnologias alternativas não são soluções para todos os problemas das favelas — mas elas são sim marcos do diálogo e do resgate dessa mobilização histórica na Maré, colocando o debate sobre os nossos direitos em pauta.

Chapa Rosa em campanha para a Associação de Moradores da Nova Holanda, em 1984. A Chapa Rosa foi um coletivo só de mulheres que ganhou a primeira eleição direta para Associação de Moradores da Nova Holanda. Com muita luta e persistência, elas conseguiram levar água canalizada para as casas da Nova Holanda. Crédito: Redes da Maré

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