Tecnologia e educação: em busca de um bom match

Coding Rights
Coding Rights
10 min readApr 26, 2019

--

Por Carol Monteiro*, estrategista de comunicação da Coding Rights | #Boletim17 — Antivigilância

Antes de tudo, um aviso: este será um texto com mais perguntas do que respostas. Isso porque, no Brasil, o emprego das novas tecnologias na educação — tanto na área pedagógica como na de gestão e comunicação — ainda é muito novo. Esta foi a conclusão após conversas com uma série de profissionais envolvidos no tema, pelo menos. Apesar de algumas instituições se destacarem pela adoção dessas práticas de forma mais adiantada do que outras, temos um panorama hoje onde é difícil analisar os impactos do uso de aplicativos, tablets, de oficinas makers, games e diversos equipamentos tecnológicos e robóticos no presente e no futuro próximo dessa geração. Podemos aqui arriscar algumas previsões e levantar questionamentos importantes quando se trata da gestão de dados pessoais e uso de inteligência artificial, por exemplo. Mas o que de fato se conclui é que a presença da tecnologia no processo de aprendizagem é irreversível e ela tende a aumentar e intensificar sua presença pelos próximos anos.

Uma geração que não tem medo de programar

A geração que hoje frequenta aulas de educação infantil e fundamental será uma geração onde os códigos de programação não são estranhos nem assustadores como foram provavelmente para a geração de seus pais, quando isso era apenas coisa de geeks e nerds. Para eles, que nasceram cercados de aplicativos, programar poderá ser quase como escrever.

Uma empresa chamada Happy Code é prova de que isso já é algo muito natural e previsto. “Criada a partir da necessidade do ensino de competências digitais para uma geração que já nasceu conectada”, ela oferece cursos de programação, robótica, desenvolvimento de games e aplicativos e até — pasmem — curso de youtubers (!!!) para crianças e adolescentes de 5 a 17 anos. Se antes ter um laboratório de informática já era sinônimo de escolas antenadas com o desenvolvimento e as demandas da tecnologia, hoje as instituições que dedicam parte de seu currículo acadêmico a essa área buscam oferecer atividades em parceria com empresas do tipo Happy Code ou investem em profissionais especializados na cultura maker, em ciência e robótica, em equipamentos de realidade virtual e aulas por meio de aplicativos.

Outra característica que provavelmente mudará com essa nova geração é o perfil predominantemente masculino nas profissões relacionadas à tecnologia. Isso porque, desde cedo, meninas também estão sendo estimuladas a entrar em contato com essa área do saber. Hoje, já existem várias iniciativas que buscam ou acolhem jovens e adolescentes que se despertaram para a programação ou a robótica, por exemplo. O BuzzFeed fez recentemente uma lista com alguns exemplos. Na paralela aos projetos independentes, gigantes do Vale do Silício como o Google também já notaram o potencial e a necessidade de conversar com esse público enquanto as meninas ainda estão na escola. No Brasil, desde 2014, a empresa organiza anualmente o projeto Mind the Gap nas sedes de São Paulo e Belo Horizonte (a ideia começou em Israel, em 2008, e depois se espalhou para outras sedes do mundo). Nele, alunas do Ensino Médio são convidadas a conhecer os escritórios, assistir palestras com mulheres que trabalham na área de engenharia da computação, entender como é a rotina, entrar em contato com alguns projetos e realizar oficinas práticas.

Olhar para esse novo cenário que as novas tecnologias trazem à educação ainda é um desafio principalmente para pais, responsáveis e educadores; afinal, com seus horizontes positivos e negativos, ele é inevitável.

E aí começam a surgir as perguntas… Como lidar com um filho que sonha em ser youtuber? Apoiar, incentivar ou negar? A tecnologia de fato colabora no progresso educacional e disciplinar? Como encontrar o equilíbrio das atividades virtuais sem evitar o distanciamento do real? E esse equilíbrio é mesmo necessário? O virtual deve ser tão amaldiçoado como diversas vezes parece ser? Como serão analisados, processados, relevados os perfis de milhões dessas pessoas que passaram toda a sua vida cedendo informações pessoais por meio de redes sociais e aplicativos? E quando se tornarem adultos, chegarem ao mercado de trabalho e forem recrutados via profiling? Eu avisei que seriam muitas as perguntas.

A cultura maker como aliada da educação

Maker é o termo usado para os “fazedores”, ou seja, aqueles que curtem literalmente botar a mão na massa. Este movimento já vem ganhando força no mundo e no Brasil há alguns anos e estimula o trabalho em equipe, a experimentação, o empreendedorismo, o despertar criativo e questionador enquanto se aprende robótica, eletrônica, automação e programação se valendo também de técnicas e materiais mais simples do artesanato e da reciclagem. Hoje é possível encontrar tanto escolas especializadas no assunto (Mundo Maker, em São Paulo, por exemplo), com cursos para crianças e adolescentes, como colégios que adotaram em seu currículo pedagógico a cultura maker, como a Escola Eleva fez no Rio de Janeiro (eles têm o seu próprio makerspace).

Mas o que já podemos observar é que todo esse potencial ‘transformador’ da cultura maker está sendo apropriado — pelo menos no Brasil — por um público que tem boas condições financeiras para pagar por esse conhecimento e por toda a quantidade de ferramentas que ele implica. É verdade que já existem iniciativas como o Olabi MakerSpace, organização sem fins lucrativos localizada no Rio que vê a tecnologia como oportunidade de transformação social, e a rede de laboratórios públicos do FabLabLivreSP, que surgiu de uma parceria da Secretaria Municipal de Inovação e Tecnologia da Prefeitura Municipal de São Paulo e o Instituto de Tecnologia Social.

Teoricamente, as escolas e cursos particulares que investem na cultura maker se dizem também acreditar e investir na compreensão de pertencimento global, mas sabemos como, na história da humanidade, essa é uma realidade difícil de se transpor. O século XXI já avançou quase duas décadas e as classes sociais seguem com sua disparidade, entre privilégios e dificuldades. As novas tecnologias, o que elas nos trazem, nos facilitam, poderão também ser oportunidade de mudança desse panorama por meio da educação? Os makers, independente de suas origens sociais e econômicas, conseguirão ter um papel relevante nesse processo? Ainda é bem cedo pra ter essas respostas. A cultura maker com certeza está fazendo a diferença na vida de muitos garotos e garotas, mas como esse perfil vai impactar na realidade do Brasil e do mundo, ainda precisamos de mais uns dez anos para ter resultados e respostas mais concretos e significativos.

Os aplicativos escolares de comunicação e gestão

Se tem um produto que podemos dizer que ‘já pegou’ nas escolas brasileiras — particulares, pelo menos — são os aplicativos de comunicação e gestão. Numa rápida busca na internet, qualquer pessoa é apresentada logo na primeira página de resultados a cerca de oito a dez produtos diferentes disputando espaço e sua atenção entre links bem rankeados e de publicidade. O motivo para uma instituição educacional migrar para um sistema de gestão e comunicação realizado via app é quase sempre o mesmo: desburocratizar, economizar papel e impressão, substituir a antiga agenda escolar e deixar de usar o e-mail, que nunca era lido por metade ou mais da metade dos destinatários.

A escola Edem é mais uma recém-adepta ao uso de apps de comunicação e gestão. Eles optaram pelo IsCool App, “o aplicativo de educação escolar que mais cresce no País” segundo eles mesmos, em frase destacada no site da empresa. O aplicativo começou a ser usado em abril deste ano e sua implementação ainda está em fase de adaptação entre pais, alunos, professores e demais profissionais da escola. Ele pode ser baixado nos sistemas Android, IOS e Windows — e este critério pesou na escolha da instituição, que antes tinha um aplicativo próprio, mas que não funcionava para IOS. Segundo Claudia Fenerich, diretora pedagógica e coordenadora de comunicação da escola, em 10 dias eles tiveram 60% de adesão. Claro que tem gente estranhando e desconfiando da nova prática. Um dos professores, por exemplo, não quis aderir. “Ele alegou que não quer se cadastrar em nenhuma empresa”, explica. Os pais e responsáveis podem optar por não baixar o app e continuar a receber as informações por e-mail, mas, mesmo para isso, têm que se cadastrar no site da IsCool. “A gente reconhece que é delicada a questão de gerenciamento de dados. A empresa nos garante segurança e criptografia, e dados como boletins, avaliações, faltas, não passam pelo aplicativo”, ressalta. Para isso, a Edem utiliza uma ferramenta própria, interna, onde arquiva todas essas informações.

A designer Joanna Chigres é mãe do pequeno Bernardo, de 1 ano e 5 meses. Interessada em tecnologia, ela conta que esse item pesou na escolha da primeira escolinha do filho. “Gosto do assunto e comecei a pensar até que ponto ela pode ajudar ou atrapalhar a educação dele”. Seu trabalho com o design tem foco na educação: ela cria treinamentos para empresas, que podem ser games virtuais, atividades por meio de realidade aumentada, podcasts e até jogos de tabuleiro. Joanna pesquisou cerca de 10 escolas até optar pela Bom Tempo Creche-Escola por uma série de pré-requisitos: linha pedagógica, espaço, cuidado, atividades extra-curriculares (música, horta, práticas esportivas, etc) e a relação com a tecnologia. A Bom Tempo usa o aplicativo IsKola para se comunicar com os pais e responsáveis. E claro, como a maior parte das escolas brasileiras, também está no Facebook e no Instagram. “Todos os dias eles tiram fotos das crianças e às sextas disponibilizam pelo aplicativo”, explica. Questionada sobre a questão de privacidade e compartilhamento desse conteúdo, inclusive de imagens do filho divulgadas pela página da escola em redes sociais, ela afirma que entende os riscos, mas que confia na instituição.

De fato, ferramentas como grupos de Facebook e Google Drive já vem sendo usados por professores e alunos bem antes dos aplicativos serem adotados. Ou seja: já há muito dado armazenado e processado pelas gigantes do Vale do Silício sobre a educação, a infância, a adolescência, a cultura, as preferências e tendências de crianças, adolescentes e jovens do Brasil. Pode parecer até ingenuidade ter preocupação com a força desse mercado de aplicativos, mas enquanto o País não tiver uma Lei de Dados Pessoais que garanta proteção à privacidade e autonomia sobre o que fazer com seus próprios dados, não existe brecha que possa ser deixada pra trás.

O Vale do Silício de olho nos dados dessa geração

Podemos dividir as pessoas que usam a internet e as novas tecnologias hoje entre aquelas que não tem a menor a ideia de que são vigiadas num regime 24/7, aquelas que tem uma vaga ideia, mas não a dimensão dessa vigilância, e aquelas que já estão cientes e preocupadas com o tema e como isso impacta ou impactará em diversos aspectos da sua vida. Junte-se a isso ao fato de que, no Brasil, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, as redes sociais são consideradas uma das ‘instituições’ mais confiáveis pelos brasileiros, ficando atrás apenas das Forças Armadas e da Igreja Católica. Diante de um cenário desses, é mais possível supor que, nesta amostra, o primeiro grupo dessa divisão é o maior. Enquanto isso, sem leis ou regulações, sem entidades de supervisão e cobrança, as grandes empresas da Tecnologia — que nos últimos anos vêm liderando os rankings das marcas mais valiosas do mundo — seguem com um olho no presente outro num futuro não muito distante, criando ferramentas e produtos que, simultaneamente, atendem às expectativas do público e do mercado, e lhes dá retorno com um dos bens mais valiosos do século 21: informação.

Na área da Educação, não faltam exemplos. O Google tem um braço dedicado somente a este tema, o Google for Education. Por meio dele, a empresa investe em ações globais e locais em parceria com diversas instituições e lança produtos. Um deles é o Google Chromebook, um notebook “desenhado para o aprendizado, feito para a sala de aula”, segundo definição própria. Ele já vem com uma série de aplicativos — de codificação, edição de vídeos, animação, entre outros — e é integrado com o G-Suite for Education, o sistema operacional em forma de nuvem por onde, num só lugar, professores enviam materiais, tarefas, testes e se comunicam com os alunos. Segundo dados divulgados pela empresa, mais de 20 milhões de estudantes usam o Chromebook no mundo todo e, em quatro anos, as vendas cresceram 58% (de 2012 a 2016). No Brasil, numa rápida busca, foi bem fácil descobrir que a Cultura Inglesa, rede de escolas que ensinam inglês, usa o Google for Education no ensino e na interatividade com alunos.

Claro que o Facebook também não está fora dessa: tem o Facebook for Education, entretanto seu foco está nos professores. Sua página fornece conteúdo relacionado à inovação e formas de ensino e aprendizado por meio da tecnologia. A tática ainda não parece tão bem sucedida como a da Google, mas por outro lado o Facebook tem o messenger e os grupos — comunidades abertas ou fechadas por onde professores e alunos do mundo todo trocam materiais e informações sobre os temas de sala de aula.

A Microsoft também tem o seu YouthSpark, uma plataforma com dicas para desenvolver habilidades digitais e tecnológicas voltada para o público jovem. Recentemente, no Rio de Janeiro, a empresa foi parceira do evento Bora Transformar, um encontro para apresentar ideias, ações e projetos de empreendedores sociais, especialistas e professores que usaram a tecnologia para inovar e envolver crianças e jovens na educação.

Ou seja: de uma forma ou de outra, por trás das boas intenções de ações ou produtos que até se tornam ferramentas úteis no ensino e no aprendizado, todas essas empresas estão interessadas em colher dados específicos da área de formação, cultura e conhecimento de uma geração completa cujo valor é imensurável atualmente. Imensurável e certamente muito, muito valioso. A aceitação de ferramentas prontas desenvolvidas por empresas do hemisfério ocidental do norte também pode impor padrões de comportamento sem que paremos para analisá-los e ponderá-los primordialmente, além de limitar a criatividade e a autonomia.

Não vamos negar como a tecnologia pode ser uma ótima aliada pedagógica, mas é importante impedir que o deslumbre com a inovação nos cegue e imobilize até que seja tarde demais para correr atrás de tudo que já foi entregue de bandeja. Por isso o trabalho de conscientização e formação de todos os profissionais da área da educação e alunos sobre riscos, uso de dados pessoais, vigilância, inteligência artificial e outras tendências é urgente e tão fundamental.

*Carol Monteiro é estrategista de comunicação da Coding Rights, jornalista e pesquisadora de Tecnologia e Comunicação.

--

--