Sororidade Genuína

Letticia Rey
Coerências
Published in
7 min readApr 30, 2018

Tenho um corpo relativamente bonito. Bonito para os padrões estéticos da nossa sociedade atual. Amo meu corpo. Acho ele lindo, sexy, adoro. (Claro, provavelmente tenho facilidade de amá- lo exatamente por estar dentro dos padrões estéticos).

Tenho vontade de usar roupas justas, barriga de fora e tudo que puder. Penso que esse é o momento mais lindo da vida pra gente exibir nosso corpo, aproveitar dele, usar e abusar. Incentivo todas as amigas e mulheres a sentirem o mesmo. No entanto, muitas vezes que tomo coragem de “me exibir” tenho que aceitar minha decisão mais de milhão de vezes. Algumas até desisto. E o mais triste é que não desisto pelo quanto os homens vão mexer comigo na rua — das coisas mais lindas que o feminismo nos traz é aprender a lidar com homens babacas — , mas desisto por muitas vezes não suportar o incômodo de outras mulheres com meu corpo.

Não, a intenção aqui não é dizer sobre o meu corpo dentro das medidas, mas dizer um pouco sobre a dor que sinto de ser “ameaça” a outras mulheres. Do desconforto que tenho e das vezes da culpa, sim, CULPA, que sinto de ter um corpo dentro dos padrões que possa de alguma maneira ferir outra mulher sem que eu jamais tenha quisto fazê-lo.

Odeio a sensação de passar pela situação de me sentir uma afronta à mulheres. Mulheres que eu amo, que quero bem, que admiro, que admiro seus corpos. Muitas vezes sinto-me uma ameaça gigante a elas, maior ainda quando estão com seus companheiros. Sinto inclusive culpa e medo de escrever sobre isso como se eu não tivesse o direito de reclamar de nada ou como se eu sentisse que o que quero com isso é exatamente me colocar contra as mulheres.

Porém, mesmo assim resolvi escrever. Primeiro porque, apesar do que possa parecer, faço um esforço diário imenso para me aceitar como MULHER, ainda mais esse modelo estereotipado de mulher. E segundo porque acredito que precisamos nos curar URGENTEMENTE das disputas que o machismo e o patriarcado criaram em nós para nós mesmas.

Lembro que quando eu era adolescente eu dizia para minha mãe que eu não queria ser “bonita”, no caso fazer parte dos padrões de beleza, mesmo fazendo. Não cheguei a fazer nada com meu corpo, rosto, cabelo que apagassem de mim esse estereótipo, mas já vi meninas que o fizeram — sem contar a infinidade de casos de meninas que mutilam outras meninas principalmente em seus rostos para que não chamem tanta atenção na escola. Apenas me escondia atrás de roupas largas e saias compridas, não porque tinha vergonha do meu corpo, ou porque tinha vergonha dos meninos — eu sempre estava junto deles, me sentia à vontade com eles —, mas porque não queria chamar atenção do mundo feminino que por trás dos elogios alimentavam uma competição da qual eu não queria participar. Os meninos raramente comentavam, as meninas sempre.

Eu lembro que me sentia mesmo meio esquisita das outras meninas. Não competia verdadeiramente com as outras garotas. Tinha uma amiga inclusive que dizia eu era meio boba por isso — apesar de tudo sempre fez parte de mim sentir compaixão pelo outro, mesmo que essa não seja uma prática muito habitual de adolescentes no geral. Lembro que as vezes eu fingia e disfarçava bem, afinal precisava fazer parte do grupo, concordando com as colegas e amigas quando falavam mal de uma ou outra menina fora do grupo, mas genuinamente não competia com elas. Eu empurrava minhas amigas para ficarem com os meninos que eu gostava, me perguntava sobre ser lésbica, porque eu realmente admirava — e admiro — as garotas, falava bem delas mesmo quando as outras insistiam em falar mal. Recentemente até achei um relato nos meus “diários” de adolescência defendendo uma menina da escola que “supostamente” teria “roubado” meu namorado, e um outro que fiz chateada com minha “melhor amiga” (adoro esses termos adolescentes!) por ela não ter ido me contar que tinha ficado com meu ex, e não pelo fato em si deles terem ficado, mesmo eu ainda gostando dele.

Uma vez chorei quando vi homens zombarem de uma moça na TV naqueles programas imbecis que fazem chacotas de mulheres feias, que as colocam no palco como se estivessem num zoológico. E mais triste que homens zombando delas, eram as mulheres, que se riam tanto ou mais.

Sei que nada disso é culpa originária das mulheres, das meninas. Sei com plena consciência que todos os comportamentos das mulheres em relação às outras mulheres vêm da nossa cultura machista que impõe a nós comportamentos competitivos que fogem a nossa essência feminina de colaboração. No entanto acredito que é nossa responsabilidade enquanto mulheres pararmos de nos olhar umas às outras como ameaças. Apesar da influência que sofremos vinda desde nossos ancestrais, cabe a nós manter ou mudar nosso comportamento em relação a nós mesmas levando a mudanças concretas em nossa sociedade que se retroalimenta de padrões e estereótipos pré definidos.

Toda vez que uma mulher me olha como ameaça menos vontade eu tenho de ser MULHER. Apesar de amar ser mulher.

Hoje tenho feito um esforço enorme de me reconectar com meu feminino, de aceitar o feminino que pulsa dentro de mim. Passei meus 29 anos, ou seja até hoje, trabalhando na minha mente a ideia de que eu não poderia ser responsável pelo que outra mulher sentia em relação a mim, mesmo eu não tendo feito nada e que eu também tinha o direito de lutar por me aceitar como sou. Fazer parte do estereótipo não significa necessariamente um estado permanente de conforto.

Sei que não é nossa culpa esse sentimento intrínseco do patriarcado, mas como será que conseguimos juntas driblar essas disputas?

E se, para além de nos aceitarmos e aceitarmos nossos corpos, também aceitarmos as outras mulheres e os corpos das outras mulheres, sejam eles dentro ou fora dos padrões? Aceitar de forma genuína e feliz pela outra.

Lembro-me recentemente que uma colega me contou sobre sua luta contra a “gordofobia”. Contou-me que passou anos de sua vida buscando aceitar seu corpo, fazendo regime, se culpando por gostar de comer. Fazia parte de grupos de mulheres que integravam essa luta. Sempre foi militante da causa e continua sendo. Um dia, por escolha própria, decidiu fazer cirurgia bariátrica. Pouco tempo depois suas colegas militantes passaram a insultá-la, insinuando que ela não tinha mais o direito de fazer parte do grupo, pois agora se encaixava nos padrões. Se queixavam de que ela optou pelo caminho mais fácil e que não aceitou o corpo dela.

Tenho certeza que as complexidades de cada caso, cada luta, cada dor é gigante e que não cabe a mim julgar os porquês de cada situação, mas confesso que me causa tristeza pensar o quanto continuamos nos atingindo e nos agredindo o tempo todo.

A luta feminista em suas linhas mais fortes da atualidade tem construído e fortalecido em nós mulheres a liberdade e apropriação de nossos próprios corpos. Tem feito com que nós mulheres tenhamos coragem de não nos calar diante dos machismos que sofremos diariamente pelos homens, tem nos ajudado de todas as maneiras a nos aceitarmos como somos, a termos orgulho das nossas individualidades e esse trabalho tem mostrado resultados — ainda não tão expressivos quanto gostaríamos. Apesar dos incansáveis esforços dos movimentos feministas e de Direitos da Mulheres o número de mulheres vítimas de violência cresce a cada ano. Dados recentes revelam que o número de assassinatos de mulheres passou de 1.353, na década de 1980, para 4.273 na última década, o que representa um aumento de 230% nos índices, segundo o Mapa da Violência. No estado do Rio de Janeiro, os dados de 2014 do Dossiê Mulher apontaram que 356 mulheres foram vítimas de homicídio doloso e 725 sofreram tentativa de homicídio. Na edição de 2015, observa-se um aumento de 18% em relação ao ano anterior, com 420 mulheres vítimas de homicídio doloso e 781 vítimas de tentativa de homicídio.*

Mesmo que ainda tenhamos muito que avançar, é possível perceber certa melhora nos comerciais de cerveja que tem mudado seus focos; um aumento cada vez maior das organizações e instituições que tem exigido, com consistente base de dados, mapeamentos e indicadores melhorias em políticas públicas de saúde para mulheres e também que combatam a violência contra a mulher; o peso hoje maior na mídia de casos de assédio — mesmo que ainda infelizmente as ações contra assediadores ainda não sejam tão efetivas quanto deveriam.

Portanto, visto as mudanças — lentas porém existentes — que temos conquistado a cada dia precisamos ainda, paralelamente a trabalhar os aspectos do fortalecimento individual da mulher sobre ela mesma, seja em relação ao seu próprio corpo, aos seus aspectos psicológicos e em relação aos seus companheiros, precisamos cuidar da relação das mulheres sobre as outras mulheres. Fortalecer cada vez mais os preceitos de SORORIDADE*, que só pertence a nós. E pararmos de uma vez por todas a nutrir sentimentos competitivos e machistas de nós em relação a nós mesmas. A começar pelas roupas que vestimos ou deixamos de vestir. A começar pela nossa AUTOAVALIAÇÃO diária sobre o que pensamos, falamos ou sentimos em relação a outras mulheres. A começar por não julgar as roupas que a outra veste, a maquiagem que usa, o jeito expansivo, a risada alta, o olhar sedutor. A começar por aceitar NOSSOS CORPOS, TODOS os tipos e formas de corpos.

São todos NOSSOS corpos. Os MESMOS corpos que sofrem dos MESMOS machismos diários, das MESMAS dores — que não são tão as mesmas quando corpos de mulheres negras, mas ainda assim corpos que se conectam pela dor, pelo julgamento. Talvez essa seja mais uma maneira de acabarmos com os esteriótipos. Aceitando o esteriótipo apenas como mais um tipo de corpo feminino e só. E ai a gente vai sonhar com o dia em que vamos simplesmente escolher livremente qual o corpo que queremos ter. Sem que ninguém decida um padrão de comportamento em relação a eles, nem mesmo nós mesmas.

*www.incid.org.br

*Sororidade é a união e aliança entre mulheres, baseado na empatia e companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum.O conceito da sororidade está fortemente presente no feminismo, sendo definido como um aspecto de dimensão ética, política e prática deste movimento de igualdade entre os gêneros.Do ponto de vista do feminismo, a sororidade consiste no não julgamento prévio entre as próprias mulheres que, na maioria das vezes, ajudam a fortalecer estereótipos preconceituosos criados por uma sociedade machista e patriarcal. A sororidade é um dos principais alicerces do feminismo, pois sem a ideia de “irmandade” entre as mulheres, o movimento não conseguiria ganhar proporções significativas para impor as suas reivindicações. A origem da palavra sororidade está no latim sóror, que significa “irmãs”. Este termo pode ser considerado a versão feminina da fraternidade, que se originou a partir do prefixo frater, que quer dizer “irmão”.

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