A Burocracia e o Processo de Desumanização

Douglas Lisboa
O Olavista
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6 min readMay 20, 2021

Por Douglas Lisboa

Olavo de Carvalho conta uma história interessante: sua tia precisava fazer uma cirurgia para extrair todos os dentes. O problema é que ela era cardíaca e para aplicar a anestesia deveria ter um acompanhamento de um médico do coração. Foram ao INSS e explicaram a situação. Os funcionários disseram que a instituição não cobria procedimentos dentários, porém, os familiares e o próprio Olavo explicaram que não era para conseguir um dentista e sim um cardiologista como acompanhante na cirurgia. Como os servidores do INSS não entenderam a situação nova para o processo burocrático, perguntavam para outros funcionários e esses jogavam, ainda, para outros onde, obviamente, a situação já estava se tornando insustentável. Depois de encher o saco com a falta de sensibilidade em entender que era uma urgência, Olavo não pensou duas vezes em ir até ao presidente do INSS com a desculpa de entrevistá-lo já que na época era um jornalista de profissão.

Com sua carteira profissional, entrou no escritório do sujeito que o recebeu de uma forma amistosa. Logo que pediu para sentar-se, Olavo disse estar ali não para uma entrevista e sim para explicar a situação. Prontamente o presidente compreendeu e atendeu ao seu pedido de conseguir o cardiologista para a tia do jornalista, e ainda criticou a falta de entendimento dos funcionários e a carga burocrática por trás daquilo.

O que aconteceu com o professor Olavo de Carvalho foi o exemplo patente da impessoalização e a perda da sensibilidade humana devido às várias camadas dos processos burocráticos que o indivíduo está submetido. A compreensão da burocracia se tornou mais relevante do que a compreensão da situação pessoal, do humano para com o outro. O presidente do INSS apenas compreendeu porque estava em uma escala hierárquica que sobressaia o mecanismo burocrático que os funcionários haviam se alienado.

Esse fator explica muito sobre a situação humana e a falta de empatia dos dias de hoje. A criação de ambientes puramente administrados como são as grandes cidades, cria outros interesses, que na maioria das vezes aliena o homem e definha a sua personalidade dando a ele uma série de camadas processuais que desviam suas perspectivas de atitudes intimamente morais tornando as relações sociais tão artificiais quanto o ambiente administrativo que habita.

Não estou aqui demonizando a gestão burocrática. Ela é um mecanismo de ordem, e uma sociedade altamente complexa só pode funcionar dessa maneira. Isso é o que pede a gestão. Uma instituição precisa ganhar vida e isso só é possível por meio de processos de gestão, entendimento de procedimentos para se chegar a uma sublime ordem para que seja alcançado o fim proposto. As muitas organizações com ou sem fins lucrativos, as instituições governamentais e sociais exigem burocracias, e os agentes que administram todo o procedimento são os burocratas.

A lei e a ordem, o dever e o entendimento dos direitos e a liberdade é uma construção civilizacional. Mas temos um evento entrópico em tudo isso. O mundo alcançou uma comodidade relevante através do capitalismo: o acúmulo de bens e acesso a ele; as inovações tecnológicas, organizacionais e políticas. Tudo isso são máquinas, e elas funcionam baseadas em estruturas meticulosas. Essa máquina “orgânica” que é a sociedade civilizada traz benefícios bem aparentes, mas também paga o seu preço. Para essa estrutura ter ordem e ser orgânica precisa de pessoas reais agindo, e essas pessoas se expressam na condição de agentes desse mecanismo com aquilo que chamamos papéis sociais. Os papéis sociais são almejados pelo homem a partir do momento em que necessita desenvolver sua personalidade no sentido de estar ajustado socialmente. Trabalhar, estudar e fazer parte de grupos de mesma intenção vocacional ou recreativa (sindicatos, clubes esportivos ou intelectual). Essa necessidade humana faz parte de sua capacidade natural, e é algo que ele inevitavelmente deseja e busca para ser feliz. Isso é o que denominamos: cidadão.

O problema entrópico da ordem no encadeamento civilizacional se dá nos seguintes termos: se a busca do indivíduo em se ajustar socialmente depende de o mesmo ser parte do mecanismo burocrático, então a sua humanidade se transforma, cada vez mais, num auxiliar a serviço, não de uma pessoa (que é todo o fim de uma organização), e sim de um mecanismo burocrático. Esse oceano tão vasto que é a estrutura a qual é exigido para ser um cidadão e encontrar essa adequação no meio, o afasta da sua capacidade pessoalizacional tornando-se num agente burocrático e não numa pessoa real que desenvolve sua personalidade no processo de socialização. Esse é exatamente o contraponto daquilo que o homem tanto almeja.

Esse transcurso da impessoalidade humana é sutil. Encontra a sua adequação e até se satisfaz com ela, mas age de forma antipática, selecionada e evolui para o problema de corrupção generalizada (já que inevitavelmente as coisas se resolverão no famoso “jeitinho brasileiro”).

O homem impessoal já não se expressa socialmente e sim burocraticamente, suas intenções agora mudaram, pois não compreende mais a sociedade genuína feita de pessoas e sim a sociedade administrada. Fora de seu clube, sindicado, família ou “galera” (onde em cada ambiente desses ele coloca a máscara da persona para se adaptar ao local) é um ser desse mundo artificializado. Apenas compreende processos, e não mais sentimentos e necessidades humanas.

Tal estado de desumanização faz com que seu mundo, quando está dentro da estrutura burocrática, seja aquele. A lei e a ordem é a do mecanismo em que está inserido e ele age dentro de uma ética moldada pela burocracia e não mais uma ética humana que preza pela empatia e moral.

É nesse grau de alienação que foi possível, por exemplo, o holocausto nazista contra os judeus. Baseado no que foi dito aqui, já não precisamos mais pensar que todos os soldados da SS eram antisemitas e odiavam os judeus, que compreendiam o espírito da “filosofia” nazista e seguiam fielmente um ideal. Não era isso. No julgamento de Nuremberg muitos diziam a frase que resume nossa meditação: “estávamos apenas cumprindo ordens”.

O medo de não se adequar a estrutura burocrática, cega e destrói a personalidade humana. É preciso mentir para si mesmo e desintegrar a capacidade natural de se importar com o outro. Não é mais preciso ser humano e sim alçar voos hierárquicos na organização ou permanecer como parte do grupo, dentro do jogo, parecendo bonito para os outros e obedecendo fielmente uma ética organizacional fria que é o processo de gestão, as leis, a burocracia, e ser não apenas um agente que ajuda a administrar e manter a máquina, mas ser a própria máquina em vez de um ser humano.

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Um outro aspecto de impessoalização do homem é a burocracia ideológica. Talvez essa seja, ainda, mais alienante do que a anterior, pois sua estrutura é mais abstrata e abrangente. Enquanto a burocracia institucional alcança aqueles que almejam ser parte da ordem social, agora, mesmo que parecido em termos de desejo de participação, esse desejo de inclusão vem da parte de querer ser integrante de um grupo cultural mais elevado. Não precisa ser da alta cultura e sim ter o desejo de obter uma opinião e visão de mundo. A ideologia contamina o sujeito tornando sua perspectiva humana tão abstrata quanto a ideologia que segue. Ou seja, a virtude de servir ao próximo como sendo a atitude de servir a outra pessoa já não existe mais, pois “pessoa” se tornou um termo sem sentido, desaparece e o único sentido que é encontrado no mundo do indivíduo ideologizado é a própria ideologia. Tudo se faz por ela e não por outra pessoa. A perda do significado de “pessoa” é reflexo da perda da própria pessoalidade. Ele mesmo já não tem mais uma humanidade e sim um “eu” abstrato e inserido na ideologia a qual pertence. É por isso que para gente desse tipo, que não reconhece o indivíduo como um ser humano, é capaz de atrocidades como vimos em ações dos comunistas na grande fome da Ucrânia em 1933 onde 7 milhões de pessoas foram mortalmente consumidas por tiranos alienados que tiraram a comida deles.

A ideologia é a alienação mais perigosa, pois diferente da burocracia institucional, ela não é necessária, é apenas um mal que não deveria estar ali.

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