A Descrição do Paraíso

O Olavista
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3 min readApr 10, 2020

Por Eugenio Corti

O convite para falar sobre o infinito me recorda uma experiência pessoal, acontecida enquanto eu escrevia um romance. Pretendia concluí-lo com um capítulo ambientado no Paraíso (para que as aventuras dos protagonistas “se concluíssem realmente”, ou seja, que chegassem àquela que é a única conclusão definitiva na história de qualquer um de nós). Aquele capítulo deveria ser rigorosamente realístico, como o é todo o romance (tratava-se de Il cavalo rosso). Meu ponto de partida era: quem está no paraíso vive uma realidade própria: pois bem, era precisamente tal realidade que eu devia individuar e descrever, como nas outras páginas descrevera (bem ou mal, mas isso é um outro assunto) determinadas realidades terrenas.

Subitamente, apareceu-me uma objeção, que acabou por se revelar definitiva: quando, na Sagrada Escritura, os personagens do Além (certos anjos, por exemplo, com vários nomes) devem encontrar os homens, eles assumem sempre um aspecto humano. Não obstante isto, eu estava determinado a descrever os seres que estão no Paraíso como realmente são, ou ao menos tentar tal descrição.

As reiteradas tentativas ocuparam-me por algumas semanas. Hoje sorrio ao lembrar daquilo, mas foi, então, um período extenuante: sentava-me à escrivaninha, escrevia algumas linhas, depois achava-as absolutamente inadequadas, deixava a escrivaninha e caminhava de um lado para o outro em meu escritório, ou então saía por entre as árvores do jardim, de um lado para o outro nas trilhas bordadas pelas crinas escuras dos lírios do vale.

Após semanas de trabalho, o capítulo programado reduzia-se ainda a uma só página (a atual última página do romance) na qual, para ser inteligível, fui obrigado a atribuir inicialmente a um personagem (Alma), que acabara de deixar esta vida, “resíduos de comportamento terreno”. Seu anjo da guarda a saudava “sorrindo-lhe sem sorrir, e falando-lhe sem falar” (eu me perguntava, porém, se isso era realismo…). A primeira das almas que, no Paraíso, vem ao encontro de Alma é Marietta “dele spole” , que, na terra, no vilarejo, fora a última entre todos. Para dar a Marietta uma figura, precisei fazer como se para ela já tivesse chegado a ressurreição da carne: “não tinha mais os cabelos repulsivos, nem a cara amarelada, nem as pernas tortas; matinha ainda os belhos olhos negros de cordeiro que na Terra pareciam tão fora de lugar em seu pobre rosto: mas, ali, já não estavam mais fora do lugar, depois que todo o resto de sua aparência — ainda que sem mudar propriamente — , por assim dizer, adequou-se a eles”; isso tornava-a “uma mulher de incomparável beleza”.

As duas mulheres, todavia, deviam exprimir, ou melhor, irradiar a felicidade perfeita, para a qual o ser-humano foi construído, aquela que dá um sentido a todo sofrimento pelo qual ele deve passar nesta vida. Mas, para representar, sem ser arbitrário (como certos pintores, mesmo grandes), tal felicidade, eu deveria apresentar Deus… Em meu caminhar de um lado para o outro entre as árvores, acompanhava-me o desalento. Até que vi um passarinho raro por aquelas bandas, um chapim-de-poupa que, enquanto se movia por entre os ramos, de quando em quando olhava para mim e emitia o seu canto, que se assemelha a uma risadinha. Parecia rir de mim… Recordei-me então da bela estória de Santo Agostinho, o qual, enquanto se esforçava para resolver o mistério da Trindade, encontrara um menino empenhado em transportar para um buraco de poucos palmos toda a água do mar.

Santo Agostinho fora desperto por um anjo com aparência de menino. A despertar-me, de maneira muito mais modesta, foi um passarinho com um penacho. Não fui além na descrição do Paraíso. Assim, concluindo, não o descrevi; a tal ponto nós, seres finitos, estamos longe do infinito.
(1998)

Do livro: Il Medioevo e Altri Racconti

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