Camus assassinado

O Olavista
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9 min readMar 23, 2020

Les faits sont les faits. Et qui dit que le ciel est bleu quand il est gris prostitue les mots et prépare la tyrannie.
Albert Camus, Le Socialisme des Potences (1957)

No dia quatro de janeiro de 1960, viajando na facel vega de seu editor, Michel Gallimard, Albert Camus perdeu a vida. No carro viajavam, além do escritor e de Gallimard, também a mulher e a filha deste último, que sobreviveram, tendo sido lançadas para fora do carro antes que este atingisse a árvore onde Camus encontraria seu fim. Com a morte do autor, que vencera o prêmio Nobel em 1957, calava-se uma das poucas vozes no mundo francófono que ousava elevar-se contra toda e qualquer forma de tirania, sem amarras ideológicas. Camus costumava dizer que o cúmulo do absurdo era a morte num acidente automobilístico. Assim, o destino colocava ironicamente sobre o escritor a lápide do absurdo contra o qual sua obra se erguia.

E se aquele acidente não tivesse sido um “acidente” propriamente dito, mas apenas um bem arquitetado atentado destinado a silenciar de uma vez por todas uma voz incômoda? É a tese defendida pelo escritor italiano Giovanni Catelli em seu livro Camus deve morire (Nutrimenti, 2013): o automóvel em que viajava Camus teria sido sabotado pela KGB durante uma das paradas feitas na longa viagem entre Lourmarin (no Sul da França) e Paris.

Mas a decisão de ir de automóvel não teria sido tomada de improviso, dado que Camus já havia comprado os bilhetes de trem (que foram encontrados em seu bolso) para partir junto com seu amigo René Char? Não tão improvisamente assim. Diz Catelli:

Na manhã do dia 3, Camus telefonou à sua secretária em Paris para algumas comunicações sobre trabalhos a recusar e para confirmar seu retorno.
Talvez a chamada pudesse ter sido interceptada, mas já diversas fontes teriam podido referir com exatidão os próximos deslocamentos do escritor.
No dia 30 de janeiro já havia escrito à atriz Catherine Sellers, uma de suas amantes, para anunciar sua chegada iminente.
No dia 31 escrevia novamente, iniciando com: “eis a minha última carta…” e anunciando com precisão a sua chegada: “Até terça-feira, minha cara, um beijo…”.
No dia 30 havia escrito também a María Casares, a mais importante de suas amantes, sua companheira histórica, dando notícias detalhadas e fundamentais: “ultima carta… somente para dizer-te que chego terça-feira, vou de carro, parto com Gallimard na segunda (…).
Logo, várias pessoas podiam saber, com suficiente antecipação, o trajeto de Camus. O círculo de amigos das duas atrizes estava cheio de potenciais informantes: os mais engajados politicamente eram aqueles próximos a María Casares (…), talvez, sem que soubesse, a partir dela informações decisivas pudessem chegar aos carnífices (pág. 23–24).

Catelli diz que sua hipótese sobre o assassinato de Camus surgiu quando, perambulando durante uma tarde por uma livraria de Praga, encontrara o livro de memórias Celý život do poeta e tradutor tcheco Jan Zábrana. No mesmo dia, mais tarde, enquanto lia avidamente o livro, deparara com um trecho que o desconcertou. Na parte de suas memórias referentes ao ano de 1980, o escritor tcheco escrevera:

De um homem que conhece muitas coisas, e tem fontes a partir das quais pode conhecê-las, ouvi uma história muito estranha.
Ele afirma que o acidente automobilístico que vitimou Camus em 1960 foi organizado pela espionagem soviética.
Danificaram um pneu do carro graças a um instrumento técnico que, com a alta velocidade, cortava ou furava a câmara de ar. A ordem para essa ação de liquidação teria sido dada pessoalmente pelo ministro das relações exteriores Dimitri Shepilov, como ‘recompensa’ pelo artigo publicado no Franc-Tireur em marzo de 1957 no qual Camus, em relação ao que acontecia na Hungria, atacou aquele ministro, nominando-o explicitamente.
Ele diz que foram necessários três anos para que a espionagem pudesse levar a termo aquela tarefa.
Mas no fim conseguiram, de um modo tão perfeito que o mundo até hoje acredita que Camus tenha morrido por causa de um banal acidente, como pode acontecer a qualquer um.
Aquele homem se recusou a me dizer como conseguira obter essa informação, mas garantiu que era totalmente confiável, e que ele sabe com certeza absoluta e sem nenhuma dúvida que as coisas aconteceram exatamente daquele modo(…). (pág. 32)

De fato, em 1956, quando a União Soviética havia reprimido violentamente os revoltosos de Budapeste, Camus (que em 1951 já provocara uma celeuma na esquerda francesa com a publicação do longo ensaio “O homem revoltado”) atacou de maneira enérgica o arbítrio russo, insurgindo-se contra aquele violência com as armas que de que dispunha: artigos, manifestos, conferências. Tendo sido recém laureado com o Nobel, devemos ter em conta que o peso que as palavras de Camus tinham sobre a opinião pública, dentro e fora da França, não era de maneira alguma irrelevante. Catelli fez um levantamento das reações de Camus à violência na Hungria desde o outono de 1956:

· No Franc-Tireur de 10 de novembro publica o artigo “Réponse à um appel”.

· Em 23 de novembro endereçou uma mensagem em favor da Hungria a um encontro de estudantes franceses.

· Deu uma entrevista sobre o assunto ao New York Times em 24 de fevereiro de 1957.

· Na revista Demain n. 63 de 21–27 de fevereiro de 1957 escreve o artigo “Le socialisme des potences”.

· Em outubro de 1957, o Times de Londres publicou uma mensagem de Camus, “Appeal for Hungarian writers”, enviada a um encontro londrino sobre o tema.

· Enfim, na Témoins de dezembro de 1958 aparece o artigo “Encore la Hongrie”, que encerra o prefácio escrito para o livro La vérité sur l’affaire Nagy (Plon, 1958) (pág. 38).

Vale a pena reproduzir aqui os dois discursos públicos nos quais Camus nomeia explicitamente o ministro das relações exteriores e que teriam, segundo as indicações de Catelli, custado sua vida. O primeiro deles ocorreu em 30 de outubro de 1956, num encontro do governo republicano espanhol que se encontrava exilado. O discurso foi posteriormente publicado no Monde Nouveau:

A terra continua a girar, disse o ministro das relações exteriores Shepilov após ter comandado a selvagem intervenção das tropas russas. Gira, com efeito, e… a mentira que já triunfa há muito começa a declinar, a verdade há muito escondida começa a nos iluminar. Mundos artificiais, cujo único cimento eram o sangue e o terror, desabam, no desapontamento e no silêncio daqueles que lhes cantavam as virtudes. A liberdade, da qual nos tinham anunciado vaidade e o necessário desaparecimento, dispersa em um único dia os milhares de doutos volumes e os exércitos sob os quais estava soterrada. Ela [a liberdade] marcha de novo, e milhões de homens sabem, de novo, que ela é o único fermento da história, a única razão de vida, o único pão do qual nunca se está saciado (pág. 38).

No segundo, num evento em 15 de março de 1957 em Paris, depois publicado pelo Franc-Tireur sob o título “Kádar a eu son jour de peur”, Camus diz:

Quando o ministro Shepilov, voltando de Paris, ousa escrever que “a arte ocidental está destinada a esquartejar o ânimo humano e a formar massacradores de toda espécie”, é tempo de responder-lhe que os nossos escritores e os nossos artistas, ao menos eles, não têm massacrado ninguém e são ainda bastante generosos para não acusar a teoria do realismo socialista dos massacres acobertados ou ordenados por Shepilov e seus semelhantes.

A verdade é que há lugar para tudo entre nós, até para o mal, e até para os escritores de Shepilov, mas também para a honra, para a vida livre do desejo, para a aventura da inteligência. Enquanto não há lugar para nada nessa cultura stalinista, senão para as bajulações, a vida cinza e o catecismo da propaganda. Àqueles que podiam ainda duvidar, os escritores húngaros acabaram de gritar, antes de manifestar a sua escolha definitiva, pois hoje preferem calar-se do que mentir seguindo uma ordem.

(…)

Sinto, com relação a isso, por dever interpretar o papel de Cassandra, e de desiludir as novas esperanças de alguns colegas indefesos, mas não há evolução possível em uma sociedade totalitária. O terror não evolui, senão para o pior, a forca não se liberaliza, o patíbulo não é tolerante.

Em nenhuma parte do mundo já se viu um partido ou um homem que, dispondo de um poder absoluto, não o tenha usado de modo absoluto. Aquilo que defina a sociedade totalitária, de direita ou de esquerda, é em primeiro lugar o partido único, e o partido único não tem nenhuma razão para destruir-se a si mesmo. É por isso que a única sociedade capaz de evolução e de liberalização, a única que deve conservar nossa simpatia, crítica e ativa ao mesmo tempo, é aquela onde a pluralidade dos partidos é uma instituição. Somente ela permite denunciar a injustiça e o crime e, então, corrigi-los. Somente ela permite hoje denunciar a tortura, a ignóbil tortura, igualmente desprezível em Argel como em Budapeste.

As deformações do Ocidente são inumeráveis, seus crimes e seus erros, reais. Mas, em conclusão, não esqueçamos que somos os únicos a deter o poder de aperfeiçoamento e de emancipação que reside no espírito livre.

Não nos esqueçamos que quando a sociedade totalitária, por seus próprios princípios, obriga o amigo a entregar o amigo, a sociedade ocidental, malgrado todos os esvanecimentos, produz sempre essa raça de homens que mantém a honra de viver, quero dizer a raça daqueles que estendem a mão até mesmo ao inimigo para salvá-lo da desgraça ou da morte (pág. 55 e 56).

O livro de Catelli traz ainda imagens da estrada onde ocorreu o acidente (uma longa reta) e do automóvel despedaçado. Segundo o autor, os jornais à época davam como causa do acidente justamente um problema num dos pneus. Examina ainda todo o trajeto da viagem e as paradas feitas, momentos que poderiam ser aproveitados pelos eventuais agentes sabotadores para executar sua missão.

Para justificar suas suposições, Catelli recorre também à descrição de outros casos que ilustram o famoso modus operandi do serviço secreto soviético. O autor cita, por exemplo, o assassinato de Ignatz Reiss e Walter Krivitsky que teriam sido assassinados pela então NKVD; Trotsky, morto no México e seu filho Lev Sedov, morto em Paris em circunstâncias suspeitas; o caso do jurista Walter Linse (1952) e do refugiado tcheco Bohumil Lausman (1953). Os assassinatos cometidos por Bohdan Stashynsky e mesmo o recente episódio do assassinato de Alexander Litvinenko, ex-agente da agora FSB, que morreu envenenado em Londres em 2006, mostram que, ainda que possa ser falsa, a informação registrada nas memórias de Jan Zábrana é bastante verossímil.

No ano do acidente de Camus (1960), a KGB estava sob o comando de Alexander Nikolayevich Shelepin, conhecido por sua crueldade e pela ausência de escrúpulos ao perseguir qualquer objetivo (pág. 74). São os anos em que ocorrem em Munique os assassinatos do intelectual Lev Rebet e do líder político Stepan Bandera, ambos ucranianos.

Catelli chegou a encontrar-se com a viúva de Jan Zábrana no intuito de obter dela a informação de quem teria dado aquela informação sobre o marido. Ela fornece três nomes, dois dos quais já estavam mortos. Do terceiro, Catelli não consegue obter nenhuma informação.

Ao final do livro, o autor explora um elo de ligação que os dois escritores em torno dos quais gira o livro: Camus e Zábrana. Esse elo é um terceiro escritor: Boris Pasternak.

Não somente era somente a defesa da Hungria contra o massacre soviético que atraia contra Camus a má vontade do Politburo. O argelino também tomou para si a causa de Boris Pasternak e foi um dos principais advogados do nome deste para o Nobel de 1958 (Pasternak seria forçado pelo governo soviético a recusar o prêmio e morreria dois anos depois). Os dois escritores chegaram a trocar várias cartas onde transparecem sincera admiração e respeito mútuos.

O tradutor da obra-prima de Pasternak para o tcheco foi justamente Jan Zábrana. Catelli conta com detalhes a aventura que foi publicação do Doutor Jivago (mesmo a edição em russo teve de ser publicada na Itália) e de sua tradução tcheca (terminada em 1968 e só publicada em 1990, seis anos após a morte do tradutor).

Para além de uma denúncia e de uma coleta de indícios, Camus deve morire é um livro que chama a atenção pela forma como é escrito. Catelli aproveita para criar boas imagens literárias e sinceros exercícios de admiração para com o escritor argelino. Tudo somado, é um livro que todo leitor de Camus, ainda que por mera curiosidade, deveria ler, afinal, o que se narra ali, se non è vero, è ben trovato.

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