O CANDOMBLÉ EM 6 SENTENÇAS

Aldo Dos Santos
O Olavista
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34 min readDec 3, 2020
GIOVANNI STRADANO, CANTO XX, 1587.

Uma definição inicial para o Candomblé é o ponto de partida essencial para chegarmos a conclusões eficazes sobre esta religião. Seu comportamento discreto e o singelo número de membros, disfarçado pelo anonimato de muitos adeptos, faz com este grupo esteja, entre outros fatores, abaixo do campo das discussões críticas, sejam estas favoráveis ou não. Se hora ou outra não se levantasse a famosa discussão acerca da proibição ou da permissão do sacrifício de animais, que como veremos é uma discussão histérica e nada séria do ponto de vista social, o Candomblé jamais seria elevado à discussão nacional; pelo contrário, ficaria nas discussões paroquiais, nas brigas entre vizinhos que não aceitam o som alto dos atabaques e das festas públicas, no canto dos sambistas e nas teses universitárias.

Chegar a um número de membros do Candomblé é impossível. O próprio IBGE não o distingue da Umbanda. Em 2010 o Brasil contava com quase 589 mil pessoas que diziam pertencer àquelas religiões. Mas vejam: qualquer número confesso deve ser multiplicado por três, no mínimo. A maioria dos membros do Candomblé opera em anonimato. Ademais, não se pode dizer que um adepto possa ser comparado a um membro de fato, que por sua vez tenha passado pelos ritos iniciáticos. Um adepto ao Catolicismo não é Católico e o mesmo se dá às demais religiões. A vida de um Pai de Santo é mais ocupada pela fidelidade da clientela do que de fato pelos filhos de Santo. Sem entrarmos em méritos teológicos, não podemos descartar aqui a pesquisa incansável do Padre Oscar Gonzales Quevedo, o qual sempre lembrava que de todos os países pelos quais passara, o Brasil era o mais supersticioso de todos. Pode haver dúvidas quanto a isso, mas não desfaz o fato de que muitos vivem recorrendo à adivinhação pelo jogo de búzios, aos feitiços etc.

PARTE I

-I-

Diz-se que o Candomblé é uma religião afro-brasileira. A afirmação não procede. Na melhor das hipóteses, diríamos tratar-se de uma religião à brasileira, do mesmo modo que não se diz que o macarrão ou a pizza sejam pratos ítalo-brasileiros, mas italianos à brasileira, mais ainda este do que aquele, como bem sabe qualquer paulistano que come pizza de picanha. Sendo assim, o Candomblé é uma religião Africana com uma roupagem totalmente brasileira, o que vai desde a indumentária de seus membros até os próprios elementos do culto — ervas, favas, contas etc. — muitas existentes na África, mas não no Brasil; outras até mesmo extintas.

A dúvida que haverá de nos acompanhar ao longo desta análise, divide-nos entre o que é o Candomblé e o que deveria ser.

Objetivamente o Candomblé é um culto à ancestralidade. Tomemos alguns argumentos retirados do documentário “Pierre Fatumbi Verger: um mensageiro entre dois mundos”, de 2000:

“Na África a iniciação é um fato muito sério e muito complexo, que deve ser hereditário, vindo dos mais antigos ancestrais.” - Babalorixá Tchabassi Amadossi, de Zogbedji.

“Na África o Orixá é um ancestral e é ligado ao lugar onde as pessoas vivem, porque toda a gente que vivia nesse lugar antigamente era da mesma família.”

“Os Orixás são antepassados divinizados, são forças imateriais […].” - Pierre Verger, Sacerdote de Ifá e antropólogo.

No Brasil é bem diferente sob diversos aspectos, mas aqui, em especial, o culto ao ancestral é praticamente desaparecido, a ponto de não ter a força suficiente para dar ao Candomblé brasileiro a mesma unidade que dá à religião Africana. Aqui a família é espiritual, forma-se nos terreiros, diferentemente daquelas às quais Verger se refere, ou mesmo Tchabassi Amadossi, casado com dezesseis mulheres e com 60 filhos, ou seja, uma vila de familiares.

O cumprimento do Odu é muito importante para se entender o que acontece no Brasil com a religião africana. Odu é o destino. Na concepção do Candomblé, todo indivíduo, todos os seres, materiais e imateriais têm um Odu. Sendo assim, uma vez que a Religião, objetivamente considerada, em seus grupos constituintes, por um lado, busca no culto ao Ancestral, como diria Verger, “ajuda de seus Antepassados”, por outro lado esforça-se na plena realização do destino. Deste modo, podemos sentenciar que

“O CANDOMBLÉ, OBJETIVAMENTE CONSIDERADO, É O CUMPRIMENTO DO ODU À ESCUTA DO ANCESTRAL”

Ocorre que nem todos na África são iniciados, mas poucos, e estes são responsáveis pela proteção da família. Em contraste a isso, temos que:

“Aqui, como não tem essa pessoa delegada pela família, cada pessoa tem de assegurar de fazer o culto individual porque a família não existe mais.”-Verger.

Esta informação nos trará um novo campo de tensão, o qual será analisado mais adiante.

-II-

Encontra-se o Candomblé entre as religiões da Antiguidade, a saber, as religiões Romana, Grega, Etrusca e Hindu. Não tenho dúvidas de que Fustel de Coulanges, em sua magnífica obra “A Cidade Antiga”, o colocaria neste quadro de religiões caso tivesse algum conhecimento a seu respeito. Muitos aspectos que se revelarão no decurso deste breve estudo mostrar-se-ão claros quanto a isso.

Estabelecem-se muitas relações neste campo. Os manes e penates, deuses do culto doméstico, e os deuses mitológicos, mais próprios do culto público — Atena, Afrodite, Hermes, Saturno, Vênus etc. — equivalem, respectivamente, aos Eguns e aos Orixás. O Egum, presente no Candomblé em geral, mas particularmente como elemento do culto privado, assemelha-se aos manes e penates e, tal qual estes, é o espírito do antepassado cultuado por uma família ou um grupo. Os Orixás, comparados aos deuses da mitologia da Antiguidade, formam o culto público. Deve-se distinguir neste ponto que muitos Orixás são Eguns e andaram sobre terra, Oduduá enquanto Rei de Ifé, Oraniã e Xangô enquanto Reis de Oió etc.

Com o advento do Cristianismo, o culto às almas recebe uma piedade específica. Já não são cultuadas como deuses privados ou públicos. Merecem orações para chegarem aos céus; ou chegam aos céus e seus exemplos de vida, junto ao seu poder intercessor, nos orienta e nos dá força vencermos o mundo; ou mesmo este aspecto comunitário, o qual se reflete nos mosteiros, onde as regras de vida dos santos orientam a vida dos consagrados.

Ancorados neste campo comparativo, apesar da ignorância que possa existir quanto a variedade de religiões pelo mundo, excetuando, obviamente, os frutos da modernidade, podemos sentenciar que

“O CANDOMBLÉ É A ÚNICA REMINISCÊNCIA DESPERCEBIDA DAS ANTIGAS RELIGIÕES SEM NADA COM QUE SE LHE POSSA COMPARAR”

-III-

Sem realizar um julgamento rigoroso, para não se dizer que as religiões africanas ficaram imperceptíveis aos olhos do Cristianismo, apesar dos esforços missionários de um período magno da Evangelização, quando os “Ides” de Cristo eram princípios essenciais na vida de um Católico e não estavam submetidos à infâmia do diálogo ecumênico, que em outras palavras é o mesmo que dizer “calem-se quanto à frase ‘Não há salvação fora da Igreja’; ou mesmo ‘Eu sou o caminho, a Verdade e Vida; ninguém vem ao Pai a não ser por mim’”, o Candomblé, em especial, encontra-se intocável por motivos diversos: o mundo politicamente correto, os movimentos culturais e sectários que se camuflam em seu seio com suas ideologias perniciosas, o indiferentismo religioso em face da indisposição dos Sacerdotes Católicos que não conseguem desligar na terra o que Deus desligou nos céus, a dizer, a tendência de muitos em se dizerem Católicos e Candomblecistas ao mesmo tempo — o próprio Oluô da Bahia, Professor Agenor Miranda Rocha, assim se definia. Tudo isso contribui para que o Candomblé esteja afastado dos diálogos críticos, os quais nem sempre visam sua destruição. Até mesmo os diálogos que se levantaram a seu favor foram suprimidos, como veremos adiante.

Muitas foram as mazelas que envolveram a vida dos Africanos. Logo no século VII inicia-se a invasão islâmica, como bem documenta o historiador franco-senegalês Tidiane N’Diaye em seu livro “Le génocide Voilé”, o que deu início a um ciclo de escravidão que durou treze séculos, embora ainda conserve seu legado no Sudão, marcado por genocídio, castração generalizada, escravidão sexual e toda sorte de tratamento desumano. Graças à infâmia que possibilitou o “desumano tráfico dos negros”, como bem disse o Papa Gregório XVI em sua Bula In Supremo, muitos Africanos chegam ao Brasil a partir da segunda metade do século XVI.

Em 1824, sob a primeira Constituição brasileira, dá-se início à liberdade de culto para as demais religiões, sem que houvesse o sinal visível dos templos. Neste contexto, surgem o Candomblé da Barroquinha em data não muito bem estabelecida — e talvez até bem antes disso — a Casa Branca do Engenho Velho em 1830, entre outros posteriores, como o Gantois, Opô Afonjá etc.

Já no século XX, culminando nos anos 70 e seguintes, o Candomblé começa a figurar no campo cultural. Jorge Amado, Clara Nunes, Betânia, sambistas em geral, entre outros, tornam-se expositores do Candomblé, o que a princípio não era nada significativo, mas que se torna temerário no momento em que a religião se torna vítima da apropriação cultural ideológica.

Podemos encontrar dois movimentos sectários que se ocultam no Candomblé. Frutos de uma minoria cooptada pela esquerda mundial, o movimento negro e o movimento LGBT formam grande corpo dentro desta religião. Muitos Pais de Santo são homossexuais e entre eles, os travestis têm grande destaque, os quais muitas vezes se esforçam para se assemelharem a Mães de Santo, o que é motivo burburinhos dentro da própria religião. A questão aqui não é ressaltar a questão sexual ou racial, mas mostrar que uma parte considerável de seus membros aderem à agenda de esquerda — e digo considerável apesar do fato de eu não conhecer entre eles algum que se diga de direita. Não podemos por hora, como não iremos de fato, dizer que há nesse processo uma completa cooptação, pois não há. Todavia, a apropriação e a intimidação por parte da esquerda e sua agenda certamente é algo que nos salta aos olhos.

Há pouco, em 2018, a Ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber convocou uma audiência pública para a qual foram convidadas todas as religiões brasileiras a fim de que se discutisse a questão da descriminalização do aborto. O Candomblé não enviou nenhum representante. Oras, por que razão uma religião que possui tantos prosélitos na esfera cultural, de significativa importância para a história brasileira e que traz ao bojo tantos membros dos movimentos que mais reivindicam direitos não se fez ouvir em um evento de tão grande importância nacional? Respondo-lhes: o Candomblé é radicalmente contra o aborto e sua formação política, social ou mesmo estrutural, faz frente à total cooptação ideológica, mas que não inibe uma pressão por parte de seus membros, o quais, intramuros, estão submetidos ao código moral religioso e à hierarquia religiosa.

-IV-

Há importantes princípios morais entre os Candomblecistas. Entre eles, podemos destacar o aborto e o incesto, este último de caráter espiritual. Segundo a Mitologia, o primeiro Orixá a conceder os ritos iniciáticos a um ser humano foi Oxum, a fim de que pudessem servir para a incorporação dos Orixás. Oxum, por sua vez, é o Orixá da fertilidade e da maternidade. Por ser a grande mãe do “Povo de Santo”, a realização de um aborto atrai sobre os homens a ira de Oxum, sendo essa uma enorme quezila para os candomblecistas, ou seja, algo que é indiscutivelmente proibido.

O incesto ao qual nos referimos há pouco trata da relação entre as pessoas iniciadas pelo mesmo sacerdote, portanto, “irmãos de santo”. Esta situação é mal vista, sendo admitida apenas em situações incontornáveis, ou talvez nem isso.

O Candomblé, em sua organização política, é uma estrutura Monárquica. Toda a autoridade pertence ao Sacerdote chefe do terreiro. Esta posição também se compara à posição do Rex das religiões antigas, conforme tratamos anteriormente. O conceito de tirania na Antiguidade, em nada se compara ao conceito dos tempos hodiernos. Tratar por tirano tinha por objetivo não fazer uso da palavra Rei. O Rei exercia o poder temporal e espiritual. Dentro do Candomblé conserva-se esse caráter. Dentro de sua estrutura, os Pais de Santo exercem total autoridade.

Há grande diversidade de cargos sacerdotais no Candomblé. Para darmos aqui um breve escopo de sua formação hierárquica, valhamo-nos dos mais clássicos e comuns.

Conforme dissemos, do Chefe do terreiro brota toda a autoridade e estes a podem delegar aos que lhe são inferiores na hierarquia. Tão logo um indivíduo chega ao Candomblé, por meio do jogo de búzios que o Pai de Santo lhe faz, chega-se a alguns esclarecimentos: qual seu Orixá protetor e se ele tem o dom da incorporação. Esclarecidos estes pontos, seguem-se duas vertentes:

1ª — a pessoa capaz da incorporação se torna Abiã, ou seja, um aprendiz, que vive um período de assimilação ao ambiente, de discernimento religioso. Após passar pelos ritos de iniciação, ele se torna um yawô, filho de Santo, irmão mais novo, e caminhará em direção à sua maioridade espiritual. Quando chega aos sete anos de iniciado, atinge-se a maioridade e aí há duas possibilidades. A primeira é que não receba o direito de ter seu próprio terreiro e, sendo assim, permanecerá no terreiro como Egbomi, irmão mais velho, na alta hierarquia, com possíveis cargos internos. A segunda possibilidade é que receba seus direitos e tenha seu próprio terreiro e siga o caminho de seus pais, tornando-se Babalorixá, se homem, ou Yalorixá, se mulher.

2ª — as pessoas incapazes da incorporação são os Ogans e as Ekedjis. Ambos pertencem à alta hierarquia do Candomblé e são braços direitos dos Chefes do Terreiro, e estes, em certo grau, até devem respeito àqueles. Os Ogans tratam das músicas, dos instrumentos e dos sacrifícios, entre outras funções masculinas. As Ekedjis cuidam dos iniciados, das festas, dos Pais de Santo, do funcionamento geral do terreiro.

Neste ponto, bem entendemos o porquê de a Religião não poder ser vítima de uma plana cooptação ideológica, embora seus membros, extramuros, possam ser cooptados e se tornarem ativistas, contudo, as qualidades intrínsecas à sua estrutura, ao seu sistema, impedem uma cooptação total, pois isso comprometeria a existência da própria religião. Reforce-se que isso não impede uma apropriação ou mesmo uma intimidação, como pensamos ter ocorrido no caso do STF.

-V-

Neste ponto, chegamos a campo de tensão que vai mudar totalmente o caráter do Candomblé brasileiro. Vejamos esta fala de Verger:

“O Pai de Santo percebe o caráter da pessoa e dá a definição através do nome do Orixá.”

Como bem vimos, o Candomblé enquanto religião objetivamente considerada, é um culto ao Ancestral. Excetuando raros terreiros, em especial àqueles da Ilha de Itaparica, este conceito objetivo já não mais opera. A vida do iniciado consiste em cumprir seu destino e adaptar-se ao longo de uma vida de ascese ao estereótipo do Orixá que o rege e que por sua vez não é seu ancestral. Todo esse sistema deixa de operar objetivamente para se tornar algo subjetivo, ou seja, não a religião enquanto tal, mas do modo como é usada em favor dos homens e como eles, conscientes ou não, pensam que ela é. Portanto chegamos à um campo no qual podemos sentenciar que, elevado ao campo da universalidade,

“O CANDOMBLÉ, DE UM CULTO OBJETIVO À ANCESTRALIDADE, TRANSFORMA-SE EM UM CULTO SUBJETIVO À PERSONALIDADE”

PARTE II

-I-

Esta última sentença nos dá base para novos esforços intelectuais, os quais nos permitirão chegar a análises mais profundas sobre o Candomblé brasileiro. Retomemos, portanto, que: temos a religião, enquanto tal, como um culto à ancestralidade e como culto à personalidade, uma vez despojada de sua base essencial, cujos instrumentos começam a operar em favor do próprio indivíduo.

-II-

Há muitos aspectos que são favorecidos no Candomblé em detrimento de outros. O mais gritante nesta mudança de paradigma que traz ao culto um novo caráter e uma subjetividade contrária à religião é o rompimento com o passado. Enquanto objetivamente considerado, o Candomblé segue um sentido histórico e nele há um bem comum a se realizar. Na África e em raros Candomblés brasileiros onde se conservaram esta tradição, o Ancestral incorpora um dos membros e auxilia a comunidade em suas realizações, como se houvesse uma continuação dos seus atos após a morte. Suprimindo-se o ancestral, a religião se restringe ao sucesso do iniciado, ou não iniciado, por meio de instrumentos que a própria religião oferece, os quais vêm de encontro ao cumprimento do Odu, do destino, vinculado por sua vez ao conjunto de elementos que limitam a personalidade do indivíduo e seu campo de ação, que é a própria vida do Orixá para o qual ele foi iniciado, medindo seus atos sem se afastar dos preceitos estabelecidos, fundamentados nas informações que se têm sobre o Orixá, como por exemplo seus gostos, suas alegrias, suas tristezas, seus feitos, enfim, toda sua biografia legada pela tradição mitológica.

A perda da tradição oral também é um fator que contribui para a transformação do Candomblé. O saber que se encontra hoje entre os Pais de Santo é incomparável ao saber de um Babalawo ou de um Babalossain africano, mas destes pontos trataremos de maneira pormenorizada mais adiante.

A prática ordinária no Candomblé é a dos esforços em vista do sucesso no cumprimento do destino e isso implica na despersonalização do indivíduo no ato da iniciação. A raspagem dos cabelos é o sinal visível desta despersonalização, seguida do novo nome que a pessoa recebe. Para aqueles que são capazes da incorporação, veja-se o que diz Verger:

“As pessoas para receberem o Orixá têm de receber uma iniciação. As pessoas perdem completamente a noção do que elas são […] não sabem nada, não são capazes de falar, não se lembram de qualquer coisa que têm e começam a seguir sua tendência e essas tendências são precisamente as do Santo.”

Esta nova vida é marcada por uma série de práticas, as quais determinarão seu bom cumprimento. O bom Católico vive sua luta contra o pecado e para sempre estar em boa amizade com Cristo recorre à penitência. Um dispositivo que se assemelhe, mesmo que bem de longe, encontra-se na vida do iniciado no Candomblé. As quezilas que mancham a vida do indivíduo, que atraem a ira do Orixá, ou mesmo algum Odu que se mostre negativado, ou seja, impedido por algum motivo de se realizar positivamente, exigem um Ebó, ou seja, uma oferenda, conforme veremos mais minuciosamente adiante.

Também fazem parte as obrigações religiosas que marcam certos períodos da vida do iniciado. Estas obrigações consistem em um período de recolhimento no terreiro, durante o qual se realizam sacrifícios, rituais, orações, seguidas ou não de uma festa pública. Estas obrigações ocorrem, de modo geral, quando se completam 1, 3 e 7 anos de iniciação. Após isso, de sete em sete anos realizam-se grandes festas que marcam o fim dos ciclos de sete anos, 14, 21, 28 e assim por diante, até a morte, quando se realiza a última obrigação.

Na a realização do destino incluem-se, inevitavelmente, as realizações das vontades do indivíduo. Para isso muitas vezes recorre-se aos feitiços. A manipulação da realidade está sempre presente na vida destas pessoas.

Mas, sobretudo, o cumprimento do destino está ligado à vontade o Orixá, seja esta vontade dada pelo próprio Orixá no ato da incorporação ou expressada por ele através jogo de búzios.

Neste ponto, torna-se mais estreito e conflitante o campo das tensões, pois, se não há a vontade do Orixá ancestral, posto que não há seu culto, o que representa esta incorporação? Sentenciemos, pois, que

“O ESTADO DE INCORPORAÇÃO É A EXPRESSÃO DA FORMA IDEAL PERFEITA DA PERSONALIDADE”

É partir deste momento que passamos a perceber com maior clareza que os aspectos subjetivos sobrepõem os objetivos, formando assim uma religião de caráter subjetivo por excelência.

-III-

Conforme vimos anteriormente, há fatores que operam em detrimento de outros no Candomblé. Por isso, analisemo-los com maior rigor e vejamos até que ponto eles resistem. Falamos, por exemplo, sobre o rompimento com o passado e a tradição oral. Vejamos bem este ponto.

Muitos Candomblés surgem pelas esquinas como frutos de dissenções, as mesmas que afligem o Protestantismo, o qual por sua vez também não possui uma unidade nem um cabeça. Filhos de santo brigam com seus Pais de Santo; outros pagam para serem iniciados; com outros sabe-se lá o que se passa e é melhor não nos aprofundarmos na miséria que alcança esta religião. De certo modo, a miséria do orgulho e da vaidade atinge a todas as religiões. Considerando estes infortúnios, com qual passado estariam rompendo? Oras, com nenhum. E até mesmo alguns Candomblés há mais tempo erigidos, afastam-se da tradição no tempo devido aos vários fatores que enumeramos quando tratamos de sua evolução histórica. Não há ancestral, não há bem comum. Que resta, então, em face do individualismo e do culto à personalidade?

O Candomblé no Brasil sobrevive com uma tradição Africana muito deficiente. Os Odu, os mitos, os feitiços, as cantigas, tudo se encontra ou deformado, ou aleijado ou totalmente usurpado.

O jogo de búzios absorveu o Opelé, que é um colar capaz de oferecer configurações em suas quedas tais quais, com bem descreveremos mais adiante, as dos búzios, e esta absorção causou uma queda brusca no número de mitos que compunham o corpo de Odu. O maior Oluô do Brasil, ou seja, o maior especialista em búzios no Brasil, Agenor Miranda Rocha, elenca em seu livro setenta e dois mitos divididos entre quatorze dos 16 Odu representados nos 16 búzios que compõem o jogo. Ora, no mesmo livro, ele recorda que ao todo, há duzentas e cinquenta e seis combinações. Duzentos e cinquenta e seis Odu, cada um com seu número específico de mitos que nem mesmo um Babalawo africano é capaz de conhecer por completo. É claro que nem mesmo o sistema mais simples é usado no Brasil. Na verdade, muito se vê por aí jogarem os búzios com a mais suposta intuição sensitiva. Sobre maiores detalhes em relação ao jogo de búzios e sua evolução, leia-se o livro “O jogo de búzios: um estudo sobre a adivinhação no Candomblé”, escrito pelo antropólogo Júlio Santana Braga, o qual foi sua tese de Doutorado na Universidade Nacional do Zaire.

Quanto ao conhecimento sobre as ervas, muito também se perdeu. As plantas na África não são simplesmente utilizadas nos atos religiosos, mas possuem, cada uma, um ofó, um encantamento que consiste em uma frase curta de fácil memorização, muitas vezes poéticas, as quais expressam as qualidades das plantas. O melhor trabalho apresentado ao Brasil foi livro de Pierre Fatumbi Verger intitulado “Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá”. Verger levantou para a pesquisa 3.529 plantas. Pensemos, portanto, em 3.529 ofó incluídos na tradição oral. Devo ressaltar que não se trata de um livro de grande valor moral, pois nele há os feitiços mais sórdidos possíveis.

No Brasil, o rito das folhas é conhecido por Sassanha, dedicado à Ossain, o Orixá das folhas. Longe de se encantarem todas as folhas com seus efó, apresentam-se estas folhas ao pré-iniciado, as quais, em parte, são depositas em um cesto enquanto outra parte é macerada em um pilão, e que por sua vez servirão para formar o banho de ervas que o indivíduo usará em seus banhos ao longo dos dias de recolhimento para a iniciação. Todos os efó são reduzidos a alguns cantos que são entoados durante o rito da Sassanha.

A música compõe a deformidade mais exposta de todas dentro do Candomblé. Raras pessoas, poucas, quase nenhuma, sabem o que cantam ou rezam. Quanto a este ponto, evoquemos as palavras de Altair T’Ogum, o qual foi professor de Iniciação à linguagem Iorubá na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, retiradas de seu livro “Nkorin S’awon Òrisà: cantando para os Orixás”:

“Curioso que sempre fui desde criança, ao ouvir as rezas e cantigas (gbàdúrà àti orin Òrìsà), fazia perguntas para saber os significados destas. No entanto, quando não obtinha uma evasiva do tipo: ‘você ainda é muito novo para saber isso’ ou, ‘todo mundo canta assim e isto não se traduz’, ou, ainda, ‘isto é segredo que só após ‘x’ anos você saberá’, não obtinha respostas, coisas que nunca engoli, e que me provocavam grande insatisfação, causando-me mal-estar por ser considerado ‘curioso’. […] verifiquei que muitas cantigas nossas são cantadas com palavras erradas ou simplesmente expressões, onomatopaicas, isto é, apenas imitando sons, ou somente tem som, mas sem letra nem sentido, o que, muitas das vezes, não passa de ‘enrolar a língua’, apenas para dar um falso ar de conhecimento para impressionar as pessoas recém ou não iniciadas, como se estivessem sendo ditas coisas importantes (o que deveria sê-lo na verdade, mas que, certamente, a grande maioria não sabe o que quer dizer ou o que diz ao cantar) quando, na verdade, o vocabulário destas pessoas (entre as quais eu também já estive) resume-se a algumas palavras soltas, numa mistura de Yorùbá, Fón, e Kimbundu, formado uma grande miscelânea.”

Não é difícil ver que o Candomblé também é afetado por esse fenômeno no qual a ignorância é fonte de autoridade.

Poucas, embora significativas, foram as tentativas de se restaurar a tradição do Candomblé, todavia, a vaidade e o orgulho dos Pais de Santo, a indisposição para renunciar ao erro, condenaram obras como a de Verger e de Altair T’Ogum ao ostracismo.

Por fim, entre os aspectos atualizados na prática do Candomblé brasileiro fica a incorporação, fato que haveremos de analisar a partir de agora.

Poucos querem se lembrar de uma fala de Pierre Fatumbi Verger e quando se lembram tentam-na distorcer e justificar de todo o modo, como que num processo de autoafirmação do tipo “Ah, ele dizia isso mas não era verdade, ele acreditava sim, era o que mais acreditava entre todos os seres do universo etc.” Trata-se, pois, da seguinte afirmação:

“Para mim não é incorporação, mas uma manifestação da nossa verdadeira natureza; uma possibilidade de esquecer todas as coisas que não têm nada a ver com você. Fica a pessoa que você era antes de aprender estas estupidezes de nacionalidade e outros comportamentos.”

Sem tentarmos analisar o que de fato seria este estado apátrida, que deseja esquecer estupidezes de nacionalidade, reforcemos nossa tese, robustecida por esta citação, de que não se trata de incorporação o transe sob o qual muitos se colocam no Candomblé. Neste caso, em que consiste este estado, bem já o definimos na última sentença, portanto, agora, resta-nos especificar como se dá este estado. Para isso precisaremos analisar o processo de iniciação e os fatos que o compõem. Tratarei com brevidade sobre este ponto, mas nada disso é segredo e por dois motivos: o primeiro é porque esses ritos variam abundantemente de terreiro para terreiro; o segundo é porque o assunto encontra-se muito bem documentado e, neste caso, para maiores detalhes sobre a iniciação no Candomblé, indico que se leia o livro “Elégùn: iniciação no Candomblé”, de Altair T’Ogun e prefaciado por ninguém menos que o Professor Agenor Miranda Rocha.

O processo de iniciação é exaustivo, atordoante e até doloroso. Para muitos é razão de esgotamento físico e mental. Quando a pessoa é dada como Ogan ou Ekedji, não tanto, mas quando a pessoa deve incorporar o Orixá, a coisa muda de figura.

Recolhe-se o abiã para a iniciação em um quarto dentro do terreiro. As qualidades deste quarto podem variar. Às vezes são amplos, arejados e recebem a claridade do sol, mas em muitos, como já me testemunharam pessoalmente, podem ser extremamente pequenos, medindo o suficiente para caber uma pessoa deitada e alguns objetos ao redor. Às vezes não recebem a luz do dia e devido ao fato de o processo de iniciação durar entre 14 e 21 dias, mesmo que houvesse a luz sol, apenas os mais fortalecidos mentalmente seriam capazes de não perder a noção do tempo. Dorme-se ao longo destes dias no chão sobre uma esteira de palha. Acorda-se ainda pela madrugada para as rezas e os banhos. Esses banhos podem variar em todos os aspectos, mas tornam-se mais penitenciais, por assim dizer, conforme a dificuldade da pessoa de entrar em transe. Esses banhos podem ser mornos ou até gelados — em alguns casos enriquecidos de pedras de gelo; podem ser perfumados, compostos por ervas e favas, ou também podem ser mal cheirosos, como por exemplo o abô, banho de ervas envelhecido, guardado em pote ad eternum, e que conforme se esgota, é completado com mais ervas maceradas. Compõem o abô partes de certos bichos sacrificados durante os ritos, o que faz com que haja nele muitas proteínas devido aos vermes que ali nadam. Em vários casos leva-se a pessoa a beber aquilo, mas claro, coa-se-lhe a fim de diminuir o choque visual. As rezas, os banhos, os ritos que proporcionam esgotamento físico, as cantigas entoadas em alto volume, acompanhas de atabaques e adjás, uma espécie de sino, tudo isso ocorrendo hora com uma intensidade atormentadora, hora em um tom místico a até mesmo débil, por fim, consegue-se levar a pessoa ao estado de transe. Todos esses cantos são entoados acima da cabeça da pessoa deitada em uma posição exaustiva no chão, da qual não pode sair, e também são configurados conforme o Orixá para o qual se inicia esta pessoa. Tendo uma vez entrado em transe, o iniciado facilmente voltará àquele estado sob o mínimo comando do Pai de Santo. Esse comando pode ser a saudação do Orixá, um bater de palmas sobre a cabeça da pessoa etc. Enfim, tem-se, portanto o domínio do Pai de Santo sobre o Filho de Santo. Uma vez em transe, sob aquele estado, a pessoa fica, conforme a citação anterior de Verger, desaprendida de todos os seus modos e então o Pai de Santo lhe ensinará novos gestos, danças e atos que deverá realizar quando estiver naquele estado.

Vistos estes fatos todos, uma vez que não se tratam de incorporações, resta-nos admitir e sentenciar que

“DÁ-SE A INCORPORAÇÃO POR UM PROCESSO HIPNÓTICO OBTIDO POR MEIO DA MÁXIMA EXAUSTÃO FÍSICA E MENTAL”

Não se incomodem, pois, os membros do Candomblé quanto a esta afirmação. A luta dos Cristãos não é lá muito diferente. Há vários por aí que se dizem porta-vozes do Espírito Santo, os quais repudiamos com veemência.

Por hora, vimos, portanto, que não obstante o fato de o Candomblé afastar-se de seus elementos essenciais, também opera em uma estrutura litúrgica fragilizada. A questão da hipnose, por sua vez, não deixa de se aplicar aos casos africanos, mas não é tão grave, afinal, estaria fortalecida pela sabedoria e pelo desejo de realização do bem comum expressado pela pessoa que “incorpora” o ancestral.

Unificados estes fatos, podemos sentenciar que:

“O CANDOMBLÉ, SUBJETIVAMENTE PRATICADO, É DEFICIENTE E ARTIFICIAL”

-IV-

Visto de fora, muitos são os elementos visíveis do Candomblé que merecem uma certa apreciação, algo que faremos neste ponto.

O Xirê, os sacríficios, os Ibgás, o jogo de búzios e os ebós são elementos observados à primeira vista por todos os membros e não membros do culto. Vejamos, pois, do que se tratam estes elementos e que se esconde por trás deles.

O Xirê é a festa pública, aquela tão bem noticiada e que atrai muitos observadores. Dá-se sempre após as iniciações e neste caso conhece-se por “saída de Yawô ou de Ogan e Ekedji”, ou ocorre após as obrigações que marcam os ciclos após a iniciação. Também acontece o Xirê durante as festas devocionais.

Exu é um Orixá que desde a mitologia possui o direito de receber suas oferendas antes das festas e, se assim não ocorrer, acredita-se que ele causará problemas e confusões para. Sendo assim, logo antes das festas realiza-se o Ipadê, ou na linguagem vulgar, despacha-se Exu. Sacrificam-lhe um galo, asperge-se seu sangue na porta de entrada a fim de se barrar a entrada do mal e oferecem-lhe farofas do lado de fora. Após este rito, preparam-se todos membros para o Xirê. Em roda, dança-se ao som dos atabaques. Este é o momento em que os Orixás vêm “passear na terra e conviver com os homens”. Realizam-se então atos que rememoram suas passagens mitológicas. Protagonizam guerras os Orixás guerreiros, como Ogun, Xangô, Obá. Esta última cobre uma das orelhas, pois a perdeu devido à uma façanha de Oxum, e assim por diante. A indumentária também traz sua simbólica. Xangô traz seu machado, Ogum sua espada, Oxum seu espelho, no qual contempla sua beleza etc. As cores estão relacionadas aos Orixás, assim como os colares de contas que contornam os pescoços de todos.

Por trás desta cena, há outros elementos não muito nobres. Não era de se esperar que um culto à personalidade, formado por pessoas que buscam a autorrealização, indiferentes ao bem comum que há culto ancestral, deixasse ter sua dose de hostilidade. A disputa de egos é imensa nessas festas. Muitos se pavoneiam com a mera intenção de exibir suas roupas caras, suas rendas Richilieu, seus colares de alabastro etc. Pois sim, o Candomblé é uma religião cara e perdulária. Uma iniciação pode custar deste R$1.500,00 até sabe lá Deus quanto.

Outro aspecto visível no Candomblé e muito controverso é o sacrifício. Mas lhes confesso: é muito muito barulho por nada. O alimento dos deuses é o alimento dos homens. Os bichos sacrificados são comidos nas festas e aos deuses são oferecidos apenas vísceras, patas, cabeças e pontas de asas, coisas que a maioria das pessoas não come normalmente. O humor elevado das discussões dá a impressão de que o bicho é esquartejado, tendo suas partes penduradas como se fosse um Tiradentes. De fato, devemos fazer uma ressalva: há uns poucos rituais que envolvem o uso integral do animal, mas não chega ao ponto de se generalizar a questão nesta análise concernente a este assunto específico, afinal, posteriormente daremos mais notícias em relação ao tema do sacrifício e as oposições à esta prática que existem dentro do próprio Candomblé, embora sejam totalmente ignoradas.

Os Igbá, por sua vez, são aqueles alguidares ornamentados com ferramentas diversas que vemos em destaque nos candomblés. Eles representam o próprio o Orixá. Dentro deles há uma pedra na qual o Orixá encontra-se encantado, ou, como alguns menos sensíveis preferem dizer, é onde o Orixá está aprisionado. Sobre esta pedra asperge-se o sangue dos animais que lhes são ofertados e ao redor põem as comidas prediletas do Orixá.

O jogo de búzios envolve outros pontos que completam nosso entendimento a seu respeito, pois trata-se do principal modo de se dialogar com os Orixás.

Muitos Pais de Santo fazem a vida financeira jogando búzios. A maioria dos adeptos do Candomblé buscam apenas sessões adivinhatórias. É claro que o futuro está vedado aos homens e o que se define por adivinhação, na realidade está no campo das possibilidades e das probabilidades.

A habilidade desenvolvida há milênios no Candomblé de se compreender as diversas personalidades é altamente aprimorada. A definição do Orixá de uma pessoa começa a partir da observação das suas características físicas e de seus modos. A partir daí o Pai de Santo já cria um campo de possibilidades. Depois de poucos minutos de conversa ou de convívio, facilmente percebe-se o temperamento e esta é a chave da descoberta. Através dos temperamentos torna-se muito fácil de se separar as qualidades de orixás. Definido o Orixá, estipula-se o campo de ação da pessoa com maior facilidade, encerrando nisso um quadro de possibilidades no campo das ações. Por exemplo, é fácil que um filho de Xangô sofra com as consequências da soberba e do orgulho; ou que um filho de Yemanjá sofra de neuroses, dores de cabeça, aflições e com indiferença dos filhos; ou que um filho de Ogun esteja envolvido em confusões e brigas etc. O jogo de búzios está intimamente ligado com outro elemento do culto que são os Ebós e seguir, descrevemos melhor o sistema dos búzios junto à explicação sobre o que é o Ebó.

Os Ebós, vulgarmente conhecido por macumba, estão fundamentados nos próprios mitos que compõem as combinações do jogo de búzios. Mostremos um exemplo. Suponhamos que alguém vá ao jogo de búzios e ao serem lançados, quinze caem com a parte fechada para cima e um com a parte aberta. Nesse caso é o Odu de número 1 que se manifesta, que fala no jogo. O primeiro Odu é composto de cinco mitos. Caso quem joga os búzios não consiga definir qual dos mitos se assemelha ao do consulente, jogam-se cinco búzios, ou seja, na mesma quantidade dos mitos, e assim, o número de búzios que caírem abertos definem o mito. Podem-se fazer outras confirmações a fim de se ter certeza de que aquele é de fato o “caminho” para o qual o jogo aponta. Suponhamos, portanto, que nesse caso confirme-se o primeiro mito do primeiro Odu, que se chama Ocarã. O primeiro mito de Ocarã trata-se uma fábula-mito que narra a história que aqui resumo:

“Um galo adivinho, o qual é chamado à pelo chefe de uma cidade para lhes trouxesse chuva. Ao chegar na entrada o porteiro o proibiu de entrar. Inflamado de raiva, o galo saca de sua bolsa de porretes um deles espanca o porteiro. Então o porteiro lhe rogou tantas pragas que se iniciou uma chuva. O galo seguiu seu caminho e ao chegar ao chefe foi considerado o herói responsável pela chuva que viera com ele.”

Diante desta história, conclui-se que o consulente se encontra em perigo iminente e sem trégua. O próprio mito, como dito acima, sugere o Ebó que deve ser feito para que nada de mal suceda. Neste caso, a oferenda deve ser composta por sete varetas de pau, sete acarajés, pois é a comida predileta de Iansã, Orixá das tempestades etc. Sendo assim, o Pai de Santo passa os objetos pelo corpo da pessoa, cantando os cantos apropriados, deposita-os no recipiente que escolhe e o entrega, ou melhor, despacha-o no lugar determinado. Breve e superficialmente nisto consiste o Ebó e as razões por que se dá.

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A subjetividade do Candomblé acaba inevitavelmente resultando em uma séria emulação dos hábitos e dos costumes devido aos esforços de se cumprir o destino dado pela própria religião. A raspagem dos cabelos e novo nome que se recebe na iniciação são sinais claros de uma despersonificação e da perda de identidade. A entrada para uma nova família também é uma situação delicada. Como naturalmente os homens desejam a beatitude e põem as questões espirituais acima de tudo, em muitos casos troca-se a família biológica pela família religiosa. Os desgostos familiares, a tristeza dos pais muitas vezes está presente, sobretudo quando há um choque entre a religião dos pais e a religião escolhida pelos filhos.

A mudança dos gostos em face das quezilas é inevitável. Filhos de Oxóssi não podem mais comer mel, filhas de Yansã não podem mais comer abóbora, filhos de Oxalá não podem mais usar preto, enfim, muitas abstinências são realizadas para que o Orixá não seja ofendido pelas coisas que mais detestam.

A pratica da feitiçaria também traz seus efeitos negativos. Esta é uma ocasião ideal para os charlatães e manipuladores. Muitos deles fazem seus filhos verdadeiras marionetes. Há casos de Pais de Santo que vivem pendurados nas carteiras de seus filhos, causando-lhes vários desgostos financeiros, pois nesses casos, não exercem um sacerdócio, mas uma profissão.

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Mas muitas são as realizações às quais se podem chegar depois de uma análise séria destes fatos. Uma boa análise de consciência, alguns momentos de sincera meditação, levam as pessoas a considerarem muitas das questões das quais tratamos.

A curiosidade sobre o futuro é uma tentação que se impõem a quase todas as pessoas. Esta especulação está sempre permeada por poucos acertos, muitos erros e as mais exóticas explicações.

Outras tensões também se encontram na conquista do estereótipo ideal em detrimento da real conduta. Muitas vezes insurge no indivíduo uma certa acídia, o que lhe causa uma indisposição para assemelhar aos aspectos positivos do Orixá. Neste caso, é comum que as pessoas passem a se explicar a partir dos aspectos negativos do Orixá, dizendo por exemplo “Ah, eu sou golpista mesmo, pois sou filho de Exu”, ou “Ah, sou rabugento mesmo, pois sou filho de Oxalá”, e assim por diante.

O culto à personalidade ideal condena o livre arbítrio da personalidade real e a cerceia de modo impiedoso.

Não podemos, a esta altura, deixar de perceber que o cumprimento do destino humano dentro do Candomblé é impossível sem os elementos do culto objetivo. Os ancestrais, os mitos, a tradição e a sabedoria orais, enfraquecem esta busca ao passo que são elementos vitais para uma conquista sadia, a qual se torna vazia e sem um sentido elevado.

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No caso da previsão do futuro da qual falamos, sempre que uma não dá certo, após um pequeno inquérito, o vidente vai apontar algo que a pessoa fez como razão para o curso dos fatos ter mudado e não ter logrado êxito a previsão. Já os iludidos, apesar dos vários desacertos, mediante o mínimo acerto sentem-se pasmos, abismados e impressionados.

Em muitos casos a realidade se impõe contrária aos desejos, ou mesmo favorável sem que se perceba. Pode-se querer fazer-se apaixonar alguém que já se encontra apaixonado, ou desejar o ódio de uma mãe por um filho que muito ama. Neste caso, a realidade sempre falará mais alto. Lembremo-nos de Jó. Após a permissão de Deus, Satanás iniciou sua costumeira obra de destruição na vida deste servo. Contudo a condição de Deus era que Jó não fosse tocado. Sendo assim, Satanás lhe tomou tudo: bens, família, criações, mas o servo de Deus permaneceu intocado, pois assim se colocava a realidade imposta por Deus.

A obsessão por se manipular os atos humanos pode ser fonte de muitas angústias e neuroses. A pessoa fixa sua atenção neste ponto de modo que se estreita a percepção da realidade circundante.

Tudo isso se dá em um ambiente no qual impera a vontade do Orixá, seja por sentença direta dele mesmo no ato da incorporação, ou mesmo por meio do jogo de búzios. Neste último caso, são inúmeras as emboscadas em que muitos caem, afinal, nem sempre é a vontade do Orixá e sim a do Pai de Santo.

No que diz respeito ao fato se assumir a nova vida e cumprir o Odu, há fatores que dificultam este processo. A ausência dos mitos para a formação do imaginário é importante fonte de inspiração; as diferenças sociais que podem significar muito nesses casos. Por exemplo, o orgulho e a pujança de Xangô justificavam-se com o fato de que ele era Rei. Outra coisa, também, é o péssimo caráter de alguns orixás. Exu com suas peripécias, Xangô com sua poligamia, Ogum que estuprou Obá e matou seus súditos durante um acesso de raiva, entre vários outros aspectos que em nada incentivam os homens de serem como os deuses.

Outra questão é o caráter do Sacerdote. Muitas vezes isso é causa de agonia para os filhos. A luxúria, a imoralidade, a lascívia, a falta de valores morais, não deixam de assolar grande parte desses ambientes.

De modo geral, o preço de se agradar aos Orixás é muito alto em vários aspectos.

Mas a questão mais séria desta análise toda é: qual o valor de tudo isto? De que vale toda esta renúncia quando não há a mínima possibilidade de um futuro celeste? Pois numa comunidade em que existe o culto ao Egum a pessoa tem a esperança de, após a morte, recomeçar sua vida e auxiliar a sua gente, dar continuidade aos seus projetos. Suprimir a vida pós morte é um gesto impiedoso e inaceitável, sobretudo quando há uma visão ortodoxa a este respeito. Nesta questão, vale-nos as palavras de Altair T’Ogun em seu livro “Axexê: o reinício da vida”:

“Mas, em geral, Éégun ou Egúngún são espíritos dos nossos antepassados, entes queridos de nossas famílias que viveram antes de nós ou até mesmo contemporâneos que ao falecer, de acordo com a vida regrada e disciplinada que tiveram tornam-se um ‘Ancestral’”

Não nos resta dúvida de que a supressão do ancestral é a ascensão da indiferença, a perda do valor da própria vida, onde a alma não tem valor nem merece respeito.

-VIII-

Existem ainda outros campos nos quais se travam grandes conflitos. Os poucos sucessos e as muitas frustrações na espera de um futuro hipotético é uma questão que sempre estará se atualizando com novos dados e sob novos aspectos. O mesmo se dá em relação à magia e sempre haverá um grande espírito conflitante de crença e descrença, afinal, conforme dissemos acima, a realidade pode estar ou não a favor de quem pratica a magia.

Todos estes pontos que levantamos até aqui conduzem a pessoa à uma grande perda de domínio da própria vida. O culto à personalidade, o abandono da identidade real, a perda dos costumes, a tentativa de manipulação do destino, tudo isso leva o indivíduo à uma perda da sensibilidade humana. Somemos aqui a ilusão quanto a uma fé verdadeira. Embora o Candomblé seja aparentemente uma religião politeísta, os Orixás estão submetidos a um deus supremo chamado Olorum, ou Olodumarê. Aqueles que puderam ler o livro “Adversus Haereses” de Santo Irineu de Lyon, facilmente poderão fazer uma comparação. O Professor Agenor Miranda Rocha tinha uma maneira poética de se referir aos Orixás. Dizia ele tratarem-se de fragmentos de deus na natureza. Mas não é bem assim. Olorum encontra-se em pleroma inacessível, íntegro, e os Orixás dominam os diversos campos da realidade, ora enquanto Eguns, dotados das mesmas qualidades que tinham em vida, ora enquanto personificações de atividades humanas, sentimentos, reinos da natureza etc.

Mas se observarmos o Candomblé enquanto culto à personalidade, vemos, além do ancestral e sua influência nas atividades, o próprio Olorum relegado ao esquecimento, o que muitas vezes nos leva a um ateísmo muito bem travestido, uma religião burocrática, cheia de ritos e processos, embora vazia de sentido espiritual.

-IX-

Muitas podem ser as decepções em relação ao Candomblé, sobretudo quando seus elementos não satisfazem a realização humana. Em alguns casos, podemos nos deparar com alguém indiferente à previsão do futuro, que rejeita a prática da magia. Em muitas ocasiões a falta de ascese moral é motivo de desilusão. Oras, nada muito diferente em outras religiões. Os Católicos também querem Padres Santos, o que muitas vezes isso não ocorre, tanto para infelicidade dos bons fiéis quanto para a alegria da turba degenerada que se delícia em coroar com louros os lobos imorais da Fé.

Ocorrem também muitos choques quando o iniciado demostra uma certa antipatia à prática dos sacrifícios. Apesar de termos tratado do assunto e visto não ser bem como se passa no imaginário popular, as cerimônias sacrificiais não deixam de ser sangrentas, sobretudo nos ritos de iniciação, onde o iniciado é banhado com o sangue de vários animais, bípedes e quadrúpedes, da cabeça aos pés, tendo até de lamber o sangue de seus pescoços imolados.

O Professor Agenor Miranda Rocha, uma figura nada desimportante, afirma ser completamente desnecessário o sacrifício de animais, como bem afirmou no documentário “Um vento sagrado”. Diz ele que basta o sangue verde das ervas. O professor Reginaldo Prandi tentou justificar a fala, alegando tratar-se de um grande embate entres os Babalawos e Babalossains, este último, no caso, era o sacerdócio de Professor Agenor, ou seja, um sacerdote de Ossain, o Orixá das folhas. Oras, mas a questão não é o embate, mas afirmação de um sábio de que é possível abandonar o sacrifício de animais. Enfim, dados os argumentos, deixemos a discussão para o Candomblé.

Todas essas oposições resultam frequentemente em um grande número de dissenções dentro da religião. Filhos brigam com seus pais e vão para outros terreiros, ou abrem os seus próprios, em fenômeno idêntico ao que se dá entre os protestantes, o quais diante da mínima divergência correm para abrir seus próprios templos e pregar a verdade verdadeira das verdades.

Essas dissenções em nada favorecem a religião. Na crença de se estar cumprindo corretamente o destino, a pessoa é levada a se distanciar mais e mais da possibilidade de uma tradição. Sim, embora não haja uma tradição de fato, nada impede de se cumprir o mandamento de Cristo, apesar de muito longe dele, “honra teu pai e tua mãe.” Com o passar dos anos forma-se uma ancestralidade que se possa consultar e que possa servir de auxílio aos descendentes. Mas bem já disse Hesíodo na antiguidade: “vão desonrar os pais tão logo estes envelheçam e vão censurá-los, com duras palavras insultando-os; cruéis; sem conhecer o olhar dos deuses e sem poder retribuir aos velhos pais os alimentos”.

-X-

Portando, chegamos ao fim desta longa análise, sem propriamente esgotar o assunto, mas sem dúvida levando o leitor à exaustão. Voltamos inevitavelmente ao dilema inicial entre o que é o Candomblé e o que deveria ser de fato. A ancestralidade sempre estará disposta a orientar o caminho dos homens e aqueles que a renegam sempre desconhecerão suas origens; mal saberão onde se encontram, logo, não saberão o caminho a se seguir. Dentro do Candomblé existe um dizer que explica as diferenças entre os terreiros: “Aqui se adoça com mel, lá com açúcar”. O que fica é a intenção de se adoçar. As buscas e as angústias humanas sempre permanecerão; a solução destes problemas é externa ao homem, exige uma busca. A religião que o conduz a afundar-se em si mesmo, afoga-o inevitavelmente e, no fim, pensa como Hesíodo: “Antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça; mais cedo tivesse morrido ou nascido depois.”

Para encerrar, dou-lhes meu próprio testemunho. Desde os quinze anos encantei-me com o Candomblé, com seus métodos adivinhatórios e seu culto público. Iniciei-me nos ritos secretos em janeiro de 2015, aos 24 anos. Pouco mais de um ano depois, sendo o Candomblé insustentável para mim, deixei-o. O restante de 2016 e todo o ano de 2017 me marcaram com o mais escarnecedor ateísmo. Ao final de 2017, embora ateu, eu era dócil à verdade e ao conhecimento, e comecei a ler o livro de Jó. Arrebatou-me em uma sensação mística quando li “se me buscares no meio da noite, se fores puro de coração, esquecerei todos os seus dias passados e lhe farei grande neste último.” Cristo lera para mim; rendi-me aos pés da Tua Cruz.

Cantarei cá breve história

De derrota e de vitória.

Qual enredo atribulado!

Más lembranças pus de lado,

Hoje as tenho sem vanglória.

Tive n’alma um pedaço,

Tão doente, inflamava.

No andar firmei o passo,

Pois, não tendo um compasso,

Neste tempo eu me arrastava.

Arrogância m’invadia.

Oh, vaidade que seduz!

Do inferno a tirania,

Qual um cão que a mim mordia,

M’avançou! Tomou-me a luz.

Sob o jugo deste breu,

Eu as forças reunia.

Aplicava-as ao eu.

Tão polido! Escarneceu!

Bem mais fundo eu caía.

Por eu ser quem desejava,

Eu pensava me encontrar.

Mais vazio eu caminhava,

Dentro em mim eu naufragava

Sem destino p’r’eu remar.

Era a linha de chegada

De um náufrago ao mar.

Dei a última braçada.

Sem ver nenhuma enseada,

Vi o sol me abandonar.

Era noite no oceano,

Só havia escuridão.

Já entregue ao desengano,

A minh’alma de tirano

Entreguei à imensidão.

Um milagre se passou!

Acordei n’outro reinado.

O Senhor que me chamou

Em seus braços me tomou

P’r’eu andar sempre ao teu lado

Eu não cria ser capaz

D’humildemente olhar p’r’a trás.

Mas venci inútil orgulho,

Da vaidade fiz um embrulho;

Quis somente O Amor Vivaz.

Pus-me então a escutá-lo;

Não podia eu mais falar.

Minha vida de resvalo

Recebeu tremendo embalo

Quando pôs-se Ele a cantar:

“Buscai-me de coração

tendo n’ele a retidão,

Não verei o teu passado,

Qu’era um tempo apequenado,

E o porei em expansão.”

Seu Amor não se traduz!

Era hora d’eu voltar.

Disse Ele: Eu sou Jesus!

Entregou-me a minha Cruz.

Não há onde a recostar.

À alma do pecador,

Não basta se encontrar.

É preciso fé e ardor,

E trocar o próprio amor

Por um lugar pra repousar.

Aldo dos Santos Dias.

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