O Gnosticismo no Pensamento Ocidental Segundo Eric Voegelin

Aldo Dos Santos
O Olavista
Published in
8 min readJan 25, 2021

Por Bráulio Sebastião

Comunismo e nazismo, o que eles têm em comum? Além do detalhe de que os dois são ideologias assassinas (o nazismo matou mais de 6 milhões de pessoas e o comunismo matou mais de 140 milhões), ambos creem que irão instalar um novo Reino na terra e que seu líder será o Messias. A cópia de símbolos cristãos pode parecer apenas mau gosto, porém é bem mais complicado do que isso. É a história de um fenômeno milenar que não resultou apenas naquelas duas tragédias, mas em uma outra anterior a elas: a modernidade.

A pesquisa sobre esse tema está espalhada em toda obra de Voegelin, mais resumidamente na Nova Ciência Da Política. Começando por tentar entender as ideologias de massa, Voegelin mergulhou em uma breve viagem histórica que começa 3.000 anos antes de Cristo

AS ORDENS

Eric Voegelin descobriu três ordens presentes nas sociedades durante a história: a ordem cosmológica, a ordem antropológica e a ordem soteriológica.

A primeira ordem, a ordem cosmológica, é a ordem das sociedades primitivas. onde as sociedades formam a sua estrutura em analogia à ordem cósmica. A sociedade tem as suas instituições baseadas na ordem do cosmo, assim, há uma instituição primeira que é coordenada por um representante de Deus e essa cria e mantém as demais instituições da sociedade. Além do mais, como a sociedade representa o cosmo, as sociedades cosmológicas acreditam que só elas existem no mundo e que todas as outras fora delas existem apenas para serem conquistadas.

Já a ordem antropológica foi um marco na história humana e aparece na antiga Grécia de Platão. Quando a ordem cosmológica entra em crise e o filósofo percebe não ser segura o bastante, ele precisa encontrar uma nova, a qual ele encontra na sua própria alma. Já não encontra a ordem no cosmo, mas no homem (por isso antropológica). E a sociedade agora será uma representante da alma, na qual haverá instituições em conflito sentimentais que terão de ser governadas pela razão.

A última ordem é historicamente tão importante quanto a segunda: a ordem soteriológica, que vem à tona com Nosso Senhor Jesus Cristo e consuma-se em Roma. Agora, o homem descobriu que a ordem da sua alma também é falha e precisa procurar a verdadeira em algo maior que ele.

Porém, justamente por ser maior, essa ordem não pode se realizar neste mundo, mas somente no outro (por isso ordem soteriológica). Então as instituições mundanas já não importam tanto assim. O que importa é como as instituições da cidade de Deus vão se comportar neste mundo.

A PERVERSÃO DA ORDEM

Assim, a ordem soteriológica é simbolizada pela teoria de Santo Agostinho das duas cidades e pela teoria do Papa Gelásio I a respeito da relação entre poder espiritual (da igreja) e poder profano (do império).

Todavia, essas diferenciações da ordem soteriológica não foram o bastante. As duas cidades de Agostinho, pouco tempo depois, não serviriam mais para o Sacro Império Romano. Os poderes espirituais e profanos estavam trabalhando juntos e já não era possível distinguir o que era história da igreja e o que era história do império.

Assim surge Gelásio tentando articular esses dois poderes, a legando que tanto a igreja quanto o império têm importância na história terrena e na história sacra. O imperador depende do Papa para salvar a sua alma e o Papa depende do imperador para que a igreja salve as almas.

No entanto, a separação dos poderes de Gelásio não durou muito tempo. A igreja continuou tendo problemas com os impérios. Houve conflitos com o império romano; depois da queda do império romano no século V houve conflito com império bizantino; e houve constantes conflitos com o Sacro Império Romano-Germânico.

O Império Germânico teve praticamente todo o seu tempo de existência marcado por conflitos, os quais foram bem simbolizados na questão das investiduras (1075–1122). O confronto para saber quem tinha o direito de nomear os bispos serviu para focalizar um sentimento que já se fazia presente desde o início do império Germânico: quem tem prioridade, o Papa ou o imperador? Cada intelectual da época tomou seu partido. Mas o impasse prevalecia. Quanto mais argumento de um lado, mais argumento do outro. No fim a confusão, só serviram para confundir ainda mais o que era império e o que era igreja.

Concomitante a esse conflito, aconteciam também no mundo medieval revoluções espirituais dos monges que, passando por São Francisco, resultariam na Reforma. Essas revoluções acentuavam a necessidade de uma vida santa para o Reino de Deus. Porém, essas reformas aconteciam em um mundo que confundia reino espiritual com reino profano. Não se via diferença e os dois reinos passaram a ser o reino de Deus.

O cristianismo desde o seu nascimento até hoje teve que batalhar contra a heresia gnóstica. Uma das razões é a flexibilidade do gnosticismo. O gnosticismo não tem uma doutrina formal e por isso mesmo pode se disfarçar de diversas doutrinas até no próprio cristianismo. Assim, mesmo quando o gnosticismo foi condenado como heresia, antes da idade média, ele ainda permaneceu em muitas seitas e muitos pensadores.

Depois de muito tempo vivendo nas sombras, o gnosticismo ganhou uma chance. A confusão entre império e igreja levou à confusão entre o reino profano e o reino sacro, enquanto o império e a igreja com as reformas espirituais continuavam a se expandir. Porém, ninguém sabia mais quem era quem e as reformas espirituais do reino de Deus, naquela confusão, eram entendidas, por quem vivia debaixo do império, como reformas do reino profano. O que escancarou a porta para o gnosticismo.

Enquanto Cristo diz que irá destruir este mundo para construir outro, os gnósticos creem que podem instalar o reino de Deus neste mesmo mundo. Eles nunca conseguiram sucesso, pois homens como Santo Agostinho e o Papa Gelásio sempre deixaram claro a diferença entre o reino profano e o reino de Deus que sustenta a promessa de Cristo. Mas com a confusão entre os reinos e com as reformas espirituais pregando reformar “o mundo”, esta distinção se tornou muito difícil. Voegelin diz que o Jesus de São Francisco já não é mais o Jesus Rei da Nova Jerusalém; é o eterno Jesus sofredor pela coisas “do mundo”; é o Jesus Intramundano. Com todo esse cenário preparado, o gnosticismo se torna um pensamento banal.

Para o gnóstico não há mais um mundo novo que será construído depois do fim da história; não há mais fim da história. Este mesmo mundo em que vivemos será transformado no mundo perfeito e essa será sua história eterna. Nesse clima, aparece no século XII Joaquim de Fiore. Surpreendido pelo poder das reformas espirituais desenvolve uma teoria da história. Para ele toda a história é dividida em três fases: a era do Pai, a era do Filho e a era do Espírito. A era do pai foi o tempo do antigo testamento, a era do Filho foi a do tempo de Jesus até o ano de 1200 e a era do Espírito a que começaria em 1200. A era do Espírito aboliria a necessidade de sacramentos, pois todos seriam seus próprios intercessores espirituais e, todos cheios do Espírito, transformariam este mundo em um reino eterno. Toda esta era do Espírito seria iniciada por um líder que provavelmente seria o próprio Joaquim. O pensamento ocidental havia se transformado do saeculum senescens (o século que envelhece) de Agostinho para o saeculum renascens.

A teoria de Joaquim de Fiore da história tripartida e sem fim inspirou a muitos pensadores. Voegelin dá como exemplo:

“a teoria de Turgot e de Comte acerca da sequência das fases teológica, metafísica e científica; a dialética hegeliana dos três estágios de liberdade e realização espiritual auto- refletiva; a dialética marxista dos três estágios do comunismo primitivo, sociedade de classes e comunismo final; e, por último, o símbolo nacional-socialista do Terceiro Reino…”

O símbolo da história tripartida é apenas um detalhe que evidencia o gnosticismo arraigado no pensamento ocidental. A profundidade e as consequências disso são bem maiores que um mero simbolismo.

O GNOSTICISMO VERSUS A EXISTÊNCIA

O pensamento ocidental moderno crê fervorosamente que o sentido da história do mundo é caminhar em direção ao progresso; progresso esse que vai chegar ao ápice. Então este mundo alcançará a perfeição e permanecerá por toda a eternidade em uma história sem fim. Eis o laço sanguíneo, não só com comunismo e com o nazismo, mas também com fascismo com o liberalismo.

O pensamento gnóstico presente em todas essas ideologias apenas ignora um pequeno detalhe: a existência.

A história pode até ter um sentido, mas não o dá para descobrir antes que ela termine. Porém, o gnóstico afirma uma história eterna. Isso é uma contradição, um nonsense; é um princípio da existência de que tudo que veio a existir chegue a um fim e se a história é transcurso de coisas evanescentes, é óbvio que ela própria é evanescente e finita. Mas o gnosticismo não é só alheio a um princípio existencial e sim a toda a existência.

A existência é incognoscível, não pode ser conhecida. Você pode conhecer um gato, mas isso não significa que saiba fazê-lo. A mesma coisa é com o mundo, como um todo, que é infinitamente maior que um gato. Tanto quanto incognoscível, a existência tem limites. Você pode pintar um gato, mas não pode transformá-lo em um tijolo. Essa limitação da existência declara a sua e a nossa imperfeição, pois, para sermos perfeitos teríamos que ser a eternidade. Isso revela a fraqueza existencial do gnóstico, segundo Voegelin:

“A casualidade da existência, sem direito ou razão, é horror demoníaco, difícil de ser suportado até pelos fortes de espírito e dificilmente suportável pelas almas delicadas que não podem viver sem acreditar que merecem…”

Quando os gnósticos pensam em refazer esse mundo completamente e torná-lo eterno, não é só as vidas de milhões que eles odeiam, mas a própria realidade. Não só a realidade, mas também o uso de símbolos cristãos demonstram o ódio deles pelo próprio criador da realidade.

Diferentemente do gnosticismo, Cristo prega a total imperfeição deste mundo e a sua salvação apenas no pós-mundo. Diferentemente do gnosticismo, Cristo não veio trazer paz à terra, mas veio lançar fogo sobre ela. Ele não amou este mundo, porque quem ama o mundo não O ama. Cristo deixou bem claro que não importa a política deste mundo, ele continuará imperfeito e cabe àqueles que são de Cristo, e não deste mundo, orarem para ver se o cálice pode passar, se não, carregar a sua cruz e ser crucificado é a única coisa que se pode fazer.

Por enquanto, o gnosticismo continua a sua blasfêmia contra a realidade. Mas é claro que isso não iria continuar sem nenhuma consequência. Odiar a realidade é também não entendê-la e aí está o grande defeito do gnosticismo: o gnosticismo é autodestrutivo. Não entendendo a realidade ele está disposto a fazer qualquer coisa que seja desvantajosa a si mesmo. Por isso os globalistas e a esquerda mundial , apesar de todas as vantagens, falham tanto em seus planos. Mas gnosticismo não é exclusivo da esquerda. A prova disso são gnóstico-crentes no Reino da democracia que permitiram o armamento da Rússia e a criação da China comunista. A autodestruição é intrínseca ao gnosticismo:

“Quanto mais fervorosamente todas as energias humanas são empenhadas no grande empreendimento da salvação através da ação imanente no mundo, mais distantes da vida do espírito se colocam os seres humanos engajados na empresa. E, uma vez que a vida do espírito é a fonte da ordem no homem e na sociedade, o próprio êxito da civilização gnóstica é a causa de seu declínio.”

É essa autodestruição do gnosticismo que permite uma reação a ele, como vem acontecendo fracamente pela tradição ocidental. Assim sendo, só se pode esperar duas coisas da autodestruição do gnosticismo: ou destruirá a si mesmo ou destruirá o mundo; ou teremos um mundo um pouco melhor, ou um mundo pior, mas nunca um mundo perfeito.

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