O Santo Inquisidor

O Olavista
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5 min readMay 16, 2020

Por Rino Cammilleri, na revista “Il Timone”, novembro de 2017

Na vulgata anticatólica, como se sabe, um lugar importante — e certamente aquele mais demonizado — cabe à inquisição. E, naturalmente, às suas vítimas. Sobre o tema, já escrevi abundantemente e não é o caso aqui de recontar toda a história. Hoje me ocuparei de outras vítimas da (ou melhor, “na”) Inquisição, ou seja, daqueles inquisidores que acabaram assassinados.

Santos inquisidores mártires

São Pedro de Verona

A inquisição ao menos garantia um regular processo aos seus acusados; os hereges, não. O mais famoso destes inquisidores trucidados é Pietro Rosini (em religião Pedro de Verona, chamado também Pedro Mártir), inquisidor da Lombardia morto por sicários contratados pelos cátaros em 1252. O seu ícone é inconfundível: um dominicano com a esta rachada por um facão. Morreu perdoando o seu assassino, Carino de Balsamo (atualmente Cinisello Balsamo, na província de Milão), que, graças à sua intercessão, arrependeu-se e se fez terciário dominicano e terminou sendo até mesmo beatificado. É sabido que a cruzada contra os albigenses na França foi causada pelo assassinato do inquisidor Pierre de Castelnau e de um seu colega. Mas fiquemos apenas nos casos da Itália. Ali, o maior número das vítimas morreram nas mãos dos cátaros, os quais, desaparecida sua heresia, engrossaram as fileiras dos valdenses no Piemonte. E justamente no Piemonte houve diversos inquisidores trucidados. Lembramos aqueles beatificados pela Igreja: Pedro Cambiani, morto em 1365, seguido logo por Antônio Pavoni em 1374 e Aimone Taparelli um século depois (1495). Todos dominicanos. É singular o fato de que todos os três vinham do convento de Savigliano, no Cuneense.

Estudante modelo

O quarto deles nasceu mesmo em Savigliano. Falo de Bartolomeu Cerveri, nascido em 1420 e filho de um grande feudatário (seu pai era senhor de Cuffia, Cervere e Rosano). Entrou na ordem dominicana quando era ainda um rapazinho e súbito se fez notar por sua inteligência. Mandaram-no estudar em Turim. Ali, em 1451, em apenas um ano conseguiu a licença e o doutorado, obtendo quase contemporaneamente a cátedra de docente. Sua preparação teológica, unida a uma profunda santidade de vida, valeram-lhe grande estima e, por isso, diversos cargos. Foi eleito prior de seu convento e de novo reeleito. Ao mesmo tempo, administrava e dirigia dois monastérios femininos, um a Savigliano e outro a Revello. Parecia, assim, a pessoa mas apta a receber o cargo de inquisidor geral do Piemonte e da Ligúria.

Nada de fogueiras nem de torturas

Durante o seu mandato, nada de fogueiras e torturas (coisa, na verdade, mais de filmes de terror tirados de O poço e o pêndulo de Edgar Allan Poe: a história nos diz outra coisa), mas sim de paciência, pregação, confutação douta e plana das afirmações dos hereges. Um método (a propósito, seguido por todos os inquisidores assassinados e beatificados) que dava seus frutos, e eram tantos aqueles que vinham reconciliar-se com a Igreja pelas mãos do inquisidor. Mas, justamente por isto, ele era considerado periculosíssimo pelos hereges. Os quais, a um certo ponto, recorreram ao argumento de quem não tem argumentos: o punhal. Vamos aos fatos. Padre Bartolomeu, cujo nome de nobre era Bartolomeu de Cervere, no dia 21 de abril de 1466, se estava dirigindo justamente a Cervere para desempenhar seu ofício de inquisidor. Paradoxalmente, nunca tinha estado ali antes, mas pressentiu que aquela seria sua última viagem. Ao menos assim disse, entre sério e jocoso, aos dois outros monges que o acompanhavam: João Boscato e Gian Piero Riccardi. Os três religiosos partiram de Bra e iram, segundo a regra, a pé. Estavam a cerca de uma milha de seu destino e estavam percorrendo um angusto vale quando foram agredidos por cinco homens armados. Dos três, um foi ferido gravemente, outro conseguiu fugir: deixaram-no ir, a eles interessava somente o inquisidor, que foi atravessado por diversos golpes de lança. Assim morreu Bartolomeu Cerveri, naquela que, desde então, as pessoas passaram a chamar “cumba d’la mort” no dialeto local. O monge que sobreviveu testemunhou que, antes de expirar, ele teve a força de rezar para aqueles que o haviam ferido.

Milagres e prodígios

Era já fim de tarde e o sol se punha. Mas os habitantes de Savigliano ficaram impressionados pelo fato de que o sol não estava onde devia estar: estava no céu do lado oposto, ou seja, na direção de Cervere. Somente quando se difundiu a notícia do homicídio do inquisidor, deram-se conta de que o prodígio acontecera naquela mesma hora e assim contaram durante a investigação. Não só isso. No ponto exato em que Bartolomeu Cerveri expirou, algum tempo depois cresceu uma árvore com uma curiosa forma de cruz. Pode tratar-se, por que não, de pias lendas, mas muitos testemunhos são relatados nos documentos. Por outro lado, não foram esses os únicos prodígios ligados à morte do santo inquisidor. Vejam este outro. O corpo do morto — quando o companheiro que se havia salvado conseguiu chegar a Cervere e avisar sobre o que sucedera — foi piedosamente recolhido e levado à cidade. Os que o transportavam se espantaram com o fato de que do cadáver não saísse sangue, e deve-se dizer que os golpes de lança que tinha recebido foram muitos. Foi deposto na igreja e colocado em um caixão. Quatro meses depois, os dominicanos de Savigliano, acompanhados por uma densa delegação de civis, apresentaram-se em Cevere para reclamar o corpo de seu confrade morto. Enquanto providenciava o traslado do corpo, com grande maravilha dos que estavam presentes, somente então, das feridas começou a sair o sangue. Em Savigliano, o mártir foi sepultado com todas as honras e desde então muitos obtiveram graças e milagres após terem rezado sobre sua tumba. Aliás, os saviglianeses começaram a recorrer à intercessão dele nas ocasiões de calamidade pelas quais a cidade passava, particularmente a sua intercessão é invocada contra os riscos das chuvas de granizo e dos raios. Mas onde podia acabar Bartolomeu de Cervere senão em Cervere? Como ele tinha profetizado: coube a Napoleão, em 1802, realizar a inteira profecia. O convento dominicano de Savigliano foi extinto. Ali estava a relíquia do inquisidor mártir. A qual, àquela altura, foi transferida para a igreja de Cervere, onde ainda hoje se encontra. Dado que a beatificação de Bartolomeu Cerveri aconteceu, como se usava antes da reforma do processo canônico, por aclamação popular, em 1853 o papa Pio IX teve de confirmar oficialmente o culto.

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