Os grandes escritores? Todos de direita

O Olavista
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5 min readApr 11, 2020

Por Giovanni Raboni no Corriere della Sera de 27 de março de 2002

Se há algo em que direita e esquerda, há algum tempo, parecem estar sorprendentemente de acordo é que na Itália não existe uma cultura de direita digna deste nome: com o corolário ou, antes, pelo motivo de que os assim chamados intelectuais — categoria da qual naturalmente fazem parte, entre outros, os romancistas, os poetas, os dramaturgos, em suma, os escritores — são “todos de esquerda”. Trata-se de uma convicção tão difusa e sobretudo, pode-se dizer, tão profundamente arraigada, a ponto de transformar-se no imaginário coletivo em uma espécie de lugar-comum meta-histórico: como se não apenas aqui [na Itália], mas em todo lugar e desde sempre houvesse um nexo consolidado e, de algum modo, fatal entre ser escritor e ser “de esquerda”.

E uma das conseqüências dessa crença, ou desse boato, é a postura de incompreensão, quando não de recusa, de estranheza, quando não de má-vontade, de desconfiança, quando não de desprezo em relação à inteira categoria, perceptível em larga camada da opinião pública pequeno-burguesa, a começar por alguns dos mais pitorescos representantes da atual maioria política. Pior para eles, poder-se-ia comentar; mas também, pensando bem, pior para nós.

Mas há também, talvez, um outro modo de colocar-se a questão, e é aquele de verificar se o lugar-comum que a constitui e fundamenta não seja, por sua vez, ao menos em parte, infundado. É o que, pessoalmente, me propus a fazer, esforçando-me em primeiro lugar para ampliar de certamente a perspectiva, ou seja, deslocando a atenção da angusta e, ahimè!, muito significativa atualidade italiana para aquilo que aconteceu durante os últimos cem anos em âmbito mundial.

E o resultado é o que me permito, aqui, de submeter à reflexão dos leitores (de direita e de esquerda) eventualmente interessados no assunto. Para dizer do modo mais direto, cru e, à primeira vista (mas somente à primeira), mais provocatório dos modos, a verdade dos fatos é a seguinte: que não poucos, ou antes, muitos, até mesmo muitíssimos dos protagonistas ou no mínimo das figuras de maior relevo da literatura do século XX pertencem ou estão de algum modo ligados a uma das diversas culturas de direita — da mais iluminada à mais retrógrada, da mais conservadora à mais subversiva, da mais respeitável à mais canalha — que se entrelaçaram ou contrastaram, ou simplesmente coexistiram no curso do século XX.

Para quem não queira (e faria, esteja bem claro, muito bem) acreditar apenas em minha palavra, eis alguns nomes, colocados em ordem segundo o mais neutro dos critérios, o alfabético, e misturando (um pouco para não complicar-me a vida e um pouco porque de outro modo se faria , para aquilo que quero dizer, mais confusão ainda) todo tipo de direita possível: Barrès, Benn, Bloy, Borges, Céline, Cioran, Claudel, Croce, D’Annunzio, Drieu La Rochelle, T. S. Eliot, E. M. Foster, C. E. Gadda, Hamsun, Hesse, Ionesco, Jouhandeau, Jünger, Landolfi, Thomas Mann, Marinetti, Mauriac, Maurras, Montale, Montherlant, Nabokov, Palazzeschi, Papini, Pirandello, Pound, Prezzolini, Tomasi di Lampedusa, W. B. Yeats…

E não para por aí; à parte, por um mínimo de respeito à peculiaridade de seu trajeto, omiti, de fato, os desertores da esquerda, aqueles que foram fulminados, a um certo ponto da vida, pela revelação dos desastres e dos crimes do comunismo histórico e que, por isto, acabaram por aproximar-se de posições substancialmente liberais: Auden, Gide, Hemingway, Koestler, Malraux, Orwell, Silone, Vittorini… E, ainda à parte, porque impossível imaginar quais teriam sido suas convicções e posturas políticas se o destino os tivesse feito viver em outro lugar, os grandes perseguido por Stalin: Babel, Brodsky, Bulgákov, Tsvetáieva, Mandelstam, Pasternak, Soljenítsin… Eis tudo, salvo (provavelmente) omissões.

Mas é já o bastante, parece-me, para colocar seriamente em discussão a credibilidade da famosa equação da qual partimos: para o alívio de quem detesta ou teme a esquerda, mas também, por motivos talvez mais complexos, para o conforto de quem pensa que ser de esquerda seja uma escolha ética e não uma questão de pertencimento automático ou, pior, uma espécie de privilégio de casta. Mas ainda mais importe, na minha opinião, seria anotar esse sumário e procurar liberar-se de um preconceito ainda mais insidioso: aquele segundo o qual uma pessoa de esquerda que escreve livros é ipso facto um escritor de esquerda e uma pessoa de direita que escreve livros é ipso facto um escritor de direita. Não é assim: o sentido de uma obra literária decide-se e se manifesta alhures, num plano totalmente diverso daquele das escolhas de caráter ideológico e dos comportamentos de caráter político. Devo precisar que não quero com isso pronunciar-me a favor da irresponsabilidade civil do escritor (e, de modo mais geral, do artista); ao contrário, estou convicto de que um escritor (um artista) deva responder pelas idéias que professa e pelos atos que realiza exatamente como responde qualquer outro cidadão. Aquilo que quero dizer é simplesmente que as duas esferas não coincidem necessariamente, mas, antes, muito freqüentemente (para não dizer a maioria das vezes) não coincidem; e que, por exemplo, é possível ser revolucionário na escrita e conservador, ou mesmo reacionário, na política, e vice-versa.

E talvez, indo um pouco além, poder-se-ia até mesmo colocar a hipótese de um obscuro, paradoxal liame entre progressismo político e conservadorismo estilístico, por um lado, e entre paixão experimental e desconfiança em relação aos “magníficos êxitos e progressos”, por outro; as inquietantes vicissitudes dos dois máximos inovadores (nos campos, respectivamente, da prosa e da poesia) dos quais a literatura do século XX pode se vangloriar, o colaboracionista e anti-semita Céline e o filo-mussoliniano Pound, parecem fornecer, neste sentido, indícios não facilmente escamoteáveis.

Mas deixemos para outro momento essa análise; estarei já contente, por ora, se tiver conseguido insinuar qualquer dúvida seja no ânimo de quem, à direita, vê todo escritor como um adversário político, seja naquele de quem, à sinistra, vê em todo escritor um companheiro de fé. Muitas vertentes protagonistas da literatura do século XX pertencem ou são, de algum modo, relacionadas às culturas ditas de direita.

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