Que diz Aristóteles sobre a Música?

Aldo Dos Santos
O Olavista
Published in
7 min readJun 7, 2021

Resumo e comentário ao livro V da Política por Felipe Lesage

Minerva tocando uma flauta de 5 orifícios — Francesco Mazzuola, séc. XVI.

Tendo aprendido com o professor Olavo a importância de conhecer o status questionis dos temas que desejamos dominar, venho tentando há algum tempo aprender aquilo que foi dito pelos grandes acerca da música — essa arte que, por insistência obstinada da Providência, acabou por tornar-se minha profissão. Assim é que surgiu o curso “Música Sacra — História, Filosofia e Atualidade”, no qual dedico a segunda aula a uma definição de música sumarizando Santo Agostinho, Santo Tomás, Zarlino, São Gregório Magno e, last but not least, Viktor Zuckerkandl.

Faltam ainda nessa lista muitos grandes pensadores que dedicaram ao menos algumas linhas ao tema. Tal era até aqui o caso de Aristóteles, e hoje tento integrá-lo a esse diálogo. Trago para os amigos do Encontro Europeu um resumo do mais célebre texto em que o Filósofo trata da música, a saber o livro V da Política, no quadro de suas meditações sobre educação e Estado.

A principal questão que interessa a Aristóteles aqui é: será que a música deve fazer parte da educação de nossas crianças1? Se para nós, hoje, parece uma obviedade a resposta ‘sim’, a opinião vigente à época do Estagirita é contrária. Isso porque se via na música uma mero lazer, e, segundo o próprio Aristóteles:

“O lazer não convém nem à infância, nem aos anos que se seguem; o lazer é o termo, a conclusão de um percurso, e um ser incompleto não deve ser interrompido” 3 4

De fato, se a opinião corrente pensava o lazer como um sinônimo de “ociosidade” (σχολή , que parece corresponder a algo como “desocupação”), e se esta mesma opinião associa a música tão somente ao ócio, deduzimos que ela tem pouca utilidade para a formação das crianças…

No entanto — diz Aristóteles — a música suscita efeitos que poderiam justificar sua utilização na educação da alma humana. Com efeito é inegável que o soar da lira, da harpa, da flauta, da voz provoca sentimentos naquele que o ouve. E se entendemos que é coisa necessária, na educação, uma espécie de adestramento sentimental, aí então a música revela-se em toda a sua utilidade. Nesse sentido, prossegue Aristóteles, a música se mostra mais eficiente do que todas as outras artes: seus efeitos na alma são imediatos, enquanto que aqueles das artes pictóricas, por exemplo, é bastante lento e, em geral, mais tênue.

Em outras palavras, captamos nas formas musicais símbolos de sentimentos como a compaixão, a ira, a melancolia, o júbilo etc. Isso nos tornaria capazes, posteriormente, de reconhecer as formas reais desses mesmos sentimentos em situações concretas, e de temperar nossa conduta graças a uma domesticação prévia. Dito de outro modo, o maior papel pedagógico da música é, para Aristóteles, o de um simulador sentimental.

“Os sentimentos da música estão para os sentimentos da vida real como o Flight Simulator está para um vôo de verdade.”

Eis aí, portanto, a função fundamental da música segundo o Filósofo. Por essa razão é que ele afirma que a música deve, sim, integrar o currículo escolar das crianças e, dado o caráter tão comumente associado a essa arte, ele preconiza que se a veja, não como lazer ou ócio, mas como saudável descontração em meio às atividades sérias 4.

Ao detalhar seu uso no contexto educacional, Aristóteles, conclui que é melhor que as crianças executem elas próprias a música, e não se contentem em apenas ouvi-la. Isso porque o temperamento das crianças é tal que a inação lhes é muito custosa; elas precisam canalizar a todo instante sua energia com alguma atividade física. Por outro lado Aristóteles desaconselha essa mesma prática musical para os adultos, afirmando que isso é coisa de escravos ou mercenários 5. Mas é bem verdade que todo homem apresenta, quando criança, determinados aspectos próprios à servidão, ao menos com relação a seus pais e mestres.

Assim, pois, é adequado que a música integre a educação com vistas, não a que se produza profissionais concertistas — ocupação vulgar, servil, aviltante a um homem livre — mas antes visando a erigir na alma dos indivíduos um panorama de “sentimentos a serem sentidos” em tal ou qual situação 6.

Isso dito, é preciso saber quais sentimentos devem ser cultivados na alma dos educandos. Aristóteles distingue então três categorias de música, segundo os efeitos suscitados:

  • Moral — É o tipo de canto a ser adotado prioritariamente na educação. Suas harmonias conduzem a alma à cultura de sentimentos adequados ao convívio social, à harmonia entre os homens e, em última análise, à edificação de homens livres. Em termos técnicos, é sobretudo a harmonia dórica que é apropriada para suscitar esse efeito.
  • - Animada & Passional — Essas duas categorias devem ser evitadas no contexto educacional, e deixadas aos teatros e aos concertos (onde se ouve música sem tocá-la) 7. O homem que tem prazer em ouvir esse tipo de música verá sua alma serva de seus próprios sentimentos e ímpetos. É por isso que o Filósofo associa automaticamente esse tipo de música aos escravos e aos mercenários. Em termos técnicos, as harmonias mais propensas a esse tipo de efeito seriam aquelas frígias, utilizadas nos ditirambos, na declamação de poesias dionisíacas etc.

Em seguida, o Filósofo irá meditar sobre a afirmação de Sócrates segundo a qual as harmonias “moles” ou “frouxas” deveriam ser banidas por completo, pois estariam associadas tão somente à embriaguez do álcool. Ora Sócrates está errado em associar uma coisa a outra de modo tão categórico, pois por um lado o fruto da embriaguez nem sempre é o afrouxamento das almas e, por outro, existem almas a quem as harmonias frouxas podem ser benéficas. É o caso sobretudo das pessoas idosas, que, após uma vida de trabalho, podem tirar proveito de uma música que lhes permita certo repouso anímico. As harmonias lídias, no caso, são as mais adaptadas a esse fim, e inclusive podem ser benéficas também às crianças, pois além de conterem a moleza própria à velhice, expressam também a decência. O modo lídio é, pois, preferido por Aristóteles, pois conduz à comunhão, por meio da virtude, entre as gerações mais velhas e mais novas 8.

Se é verdade, portanto, que existem harmonias que devem ser privilegiadas e outras evitadas, deve haver também, não obstante, certa moderação na aplicação desse princípio. Isso porque, a uma alma que se acostumou desde sempre a ser conduzida pelos ímpetos de harmonias violentas, será muito difícil alçar-se, de um instante a outro, à pureza excelsa de harmonias morais, como aquelas dos cânticos sacros que ouvimos nos templos 9. Essa ponderação leva Aristóteles a evocar um princípio que deve reger a educação, a saber: “Quanto à educação musical, três coisas são necessárias essencialmente: em primeiro lugar devemos evitar todo excesso; em seguida devemos fazer aquilo que é possível; enfim devemos fazer aquilo que é conveniente”.

“A música é, pois, um verdadeiro gozo; e como a virtude consiste precisamente em saber gozar, amar, odiar segundo a reta razão, conclui-se que nada merece mais estudo e atenção do que a busca da capacidade de bem julgar as coisas, e de instalar nosso prazer em sensações honestas e ações virtuosas. Ora nada é tão poderoso quanto o ritmo e os cantos musicais para se imitar com o máximo de realidade a ira, a bondade, a coragem, a sabedoria […] bem como seus opostos”.

1 Educação estatal, entenda-se. Detalhe surpreendente, a ser desenvolvido mais tarde: Aristóteles afirma que, em se tratando de pontos de interesse comum e público, a educação deveria ser pública e comum. Ele critica, nesse sentido, aqueles que educam seus filhos em casa.

2 Política, V, IV, §4.

3 Para posterior meditação: donde intuo algo de equivocado na cisão atual entre mundo de trabalho, de lazer, de família, etc. Essa visão, que talvez possamos chamar de burguesa ou industrial, abalaria em suas bases mesmas aquilo que Adolphe Tanquerey chama de virtude de integridade, necessária para que o homem seja elevado ao plano sobrenatural

4 Sim, Aristóteles afirma que o melhor que a música pode fazer é descontrair, em meio ao estudo de coisas mais sérias. Isso poderia ofender os melômanos mais sensíveis, mas a mim me parece uma constatação pertinente. Ademais, dado que hoje 99% da espécie humana se deixa guiar tão somente por sentimentos e pela força das circunstâncias, suponho que a música deva estar a gozar, nos dias de hoje, de um grande poder de fogo.

5 Se o que entendi sobre o mercenário está correto, a saber que é aquele que realiza uma ação com vistas ao dinheiro e não com vistas ao bem concreto que aquela ação produz, é forçoso constatar que vivemos quase todos, hoje, por escolha ou imposição, uma vida de mercenário. Ao que me vem a citação de Olavo de Carvalho, que diz “Se o trabalho a que você se dedica já não é sua própria recompensa, toda recompensa será prejuízo”.

6 A música também adestra o corpo. Desenvolver isso depois

7 Nesse sentido, não é impossível que haja correlação entre esses dois fatos: Por um lado, na presente geração, é menor o número de pessoas que sabem tocar um instrumento musical ou cantar, se nos comparamos à geração passada. Por outro, a música que se houve hoje em dia é incomparavelmente mais estimulante que aquela de nossos pais.

9 Quanto a essas três harmonias: será possível conhecer o que Aristóteles entendia por dórico, frígio e lídio, sabendo que o que hoje chamamos de modos gregos dificilmente corresponderá ao fenômeno em questão?

10 A mediar: música baixa, música e esforço pastoral.

--

--