Virilidade e tragédia — I — Don Giovanni

O Olavista
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8 min readApr 3, 2020

“La virilité est un abordage tragique de la vie”.
Pierre Yves Rougeron

Preâmbulo

O entrevistador pergunta a Pierre Yves Rougeron em que consiste a tal da virilidade, e ele responde assim: “La virilité est un abordage tragique de la vie. A batalha contra a virilidade é a batalha pela supressão da dimensão trágica da vida.

Quando li aquilo dei um grito: Ah!!!
E exclamei em maiúsculas: “Pô, maravilhosa definição!”, acrescentando em seguida: “… e faz todo o sentido, já que uma característica dos personagens femininos é negar, ou amenizar esse aspecto trágico. Como Ofélia, Desdêmona, Gretchen, Sônia, etc”.

E foi assim que a idéia fixa entrou na minha cabeça e foi tomando a forma que ainda não tomou de todo e que apresento aqui aos pedaços, como um mosaico desfeito. A princípio seriam duas conferências sob o título “As mulheres e o trágico — I Literatura” e “II — Ópera”. E tudo seguia nessa direção até que apareceu aquele espectro no meu caminho: o dissoluto, o nefando, Don Giovanni.

E ele chegou para valer da última vez que assisti a adaptação para o cinema feita pelo comunistíssimo cineasta americano Joseph Losey. E, daí, tive de enxertar em “As mulheres e o trágico” aquele que é terror e fascinação para o feminino e chegamos ao ponto em que estamos, ou seja, aqui.

Don Giovanni — O fascínio de um nome

Don Juan es immortal como el teatro!
Miguel de Unamuno

Don Giovanni é um personagem que dispensa apresentações, uma figura literária que conseguiu tornar-se arquetípica, como Fausto, Quixote ou mesmo Hamlet. Mas mesmo mais do que todos estes. No livro “Sedotti da Don Giovanni: ovvero, il fascino di un nome”, Giuseppe Pardieri faz um inventário dos mais famosos Don Giovanni que apareceram na cultura ocidental. E, ao percorrer essa lista, não podemos nos furtar à conclusão de que qualquer aspiração à alta cultura precisa tomar consciência, ainda que superficialmente, de tão imenso personagem.

Não pretendo aqui, para não cansar o leitor, fazer uma história precisa das várias metamorfoses do mito, do símbolo (e acredito que a palavra não esteja empregada de forma equivocada aqui) Don Giovanni, mas apenas apontar para alguns pontos chave nessa história, a fim de que se possa passar à ópera de Mozart com um maior proveito. E a história do sedutor já começa nos causando uma surpresa: o criador do personagem foi (pasme, leitor!) um monge espanhol do século XVII, Fra’ Gabriele Télles, mais conhecido como Tirso De Molina que, segundo nos informa Pardieri, “fuçando entre as páginas descoradas de uma velha crônica, ou em volume de obscuras lendas, teria trombado (trombar é um verbo que, em italiano, gera confusões) com a figura de um certo nobre, Giovanni Tenorio, um jovem, residente em Sevilha, que na vida tinha feito vilezas mil: assassino, mentiroso, desrespeitador das leis divinas e humanas, mas também, como diríamos nos hoje, um emérito, incorrigível pegador”. Foi a peça de Tirso De Molina o primeiro jorro do caudaloso manancial de obras que giram em torno do grande personagem. Faço em seguida uma brevíssima lista, apenas com as mais famosas:

Molière — Don Giovanni

E.T.A. Hofman — Don Giovanni

Apollinaire — “os três Don Giovanni”

Auden — “A carreira de um libertino”

Bergman — “O olho do diabo”.

Byron — Don Juan

Tchekov — “Don Giovanni à maneira russa”.

Colette — “Supplemént a Don Juan”

Corneille — “Il convitato di pietra”

Dumas pai — Don Giovanni de Maraña ou a queda de um anjo

Flaubert — Une nuit de Don Juan

Gluck — Don Juan oder das steinerne Gastmahl

Goldoni — Don Giovanni ossia il dissoluto

Kierkegaard — Diário de um sedutor

Musset — Une matinée de Don Juan

Pushkin — O Convidado de pedra

Rilke — A eleição de Don Giovanni

Tolstoi — Don Giovanni

Unamuno — El hermano Juan o el mundo es teatro

E a lista poderia se alongar ainda indefinidamente. Seria impossível traçar uma imagem completa de um personagem sobre o qual vários gênios se debruçaram ao longo de séculos, sem esgotá-lo. Devo me contentar em aludir a algumas características marcantes desse personagem fascinante, focando especialmente na ópera de Mozart/Da Ponte. E o verbo “aludir” ali não é casual.

Aludir, verbo cuja etimologia remonta ao ludere (jogar) latino — e que tem as acepções de tocar ligeiramente, de acenar a algo — é talvez o mais preciso para se empregar quando se trata de especificar a tentativa de falar de música com outra linguagem que não seja a música mesma. Ainda que a empreitada seja, de saída, impossível, o esforço de empreendê-la é literariamente gratificante.

Estou a cada dia mais convencido de que de que a literatura é o lugar mais propício para se falar de música. E vice-versa. Mais do que uma mera opinião, trata-se de uma constatação. Os ensaios dos musicólogos têm lá seu appeal, é verdade, contudo, me parece que nada consegue substituir aquele sabor que a música tem quando bem tratada na literatura, ou que tem a literatura quando assimilada na boa música. No primeiro caso, uma roça a outra através de alusões mais ou menos sedutoras, a depender do talento do escritor. Podemos pensar aqui nos contos de Hoffmann, nos romances de Thomas Mann e Aldous Huxley, em algumas belas páginas do nosso Machado de Assis. Já no segundo caso — a música que toma a literatura — há uma completo envolvimento desta última pela primeira e aparecem aí obras que, creio, não podem ser igualadas. Penso qui, por exemplo, no Otello de Verdi/Boito, no Rosenkavalier e na Elektra de Strauss/Hofmansthal, nos Lieder de Schubert que tomaram seu texto dos poemas de Goethe, nos madrigais de Monteverdi sobre textos do poeta louco Tasso e (porque não?) no Don Giovanni de Mozart/ Da Ponte.

Eduardo Galeano (gritos histéricos na direita!), sim, Eduardo Galeano, escreveu um pequeno texto em seu “Livro dos Abraços” com o título arte que dizia o seguinte:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Pai, me ensina a olhar!

Sim, era um comunista, et cetera; mas matou a charada. Quando falo desse circundar uma obra de alusões de modo a construir no leitor o desejo de conhecê-la e ao mesmo tempo a sensação de que ela é já familiar, estou falando desse ensinar a olhar. Um grande mestre nesta arte foi o Carpeaux, tanto falando de música quanto de literatura. Outro? Stefan Zweig. Outro ainda? O próprio Hoffmann. E tantos outros mestres que andam por aí.

Então, mãos à ópera!, guiados por Hoffmann:

Abertura — Notte giorno faticar — Entrada de Don giovanni:

No andante, os frêmitos do terrível regno del pianto infernal se apossaram de mim; pressentimentos de horror encheram-me a alma. A alegre fanfarra que começou no sétimo compasso ressoou em mim como um júbilo sacrílego; vi numa noite profunda demônios de fogo alongarem as garras flamejantes na direção da vida de homens felizes que dançavam alegremente à beira do abismo sem fundo. A luta da natureza humana contra as potências terríveis e ocultas que a circundam, observando sua perda, apresentou-se claramente aos olhos do meu espírito.

Finalmente, a tempestade se acalma; rapidamente abrem-se as cortinas. Tremendo de frio e grosseiro, Leporello avança na noite escura, diante do balcão: “Notte e giorno faticar…” .

Eis que Don Giovanni precipita-se no palco; seguido por Dona Ana, que segura o culpado pelo manto.

A veste branca (de Don’Anna) noturna trai encantos que não se deixam nunca ver sem perigo. O seu coração, fraquejante diante do terrível delito, palpita com violência… E eis aquela voz! “Non sperar se non m’uccidi”. Através da tempestade dos instrumentos, brilham como raios de fogo os sonos, fundidos num metal etéreo.

Em vão Don Giovanni tenta libertar-se. Mas ele quer realmente? Porque não afasta com um golpe vigoroso aquela mulher e foge? O seu delito lhe tirou as forças, ou é o confronto entre o ódio e o amor em seu ser que lhe tira a coragem e o poder? O velho pai pagou com a vida a loucura que cometeu de desafiar, nas trevas, esse robusto adversário;

Mi pare sentire odor di femmina…

Il catalogo è questo, cara Dona Elvira:

Don Giovanni exprime livremente, na selvagem ária Fin ch’an del vino, o próprio íntimo ser, aquele seu ser desolado, assim como exprime desprezo pelos miseráveis mortais que o circundam, e que existem apenas para intrometerem-se nas suas insípidas aventuras, a fim de arruiná-las.

La ci darem la mano — Zerlina (vorrei e non vorrei) e Masetto (o homem fraco) — Don Giovanni (virilidade)

A cenar teco — Don Giovanni no inferno

Eis que estou à porta, e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo.
Apocalipse, 3:20

Già la mensa è preparata! Don Giovanni estava sentado entre duas raparigas que acariciava e fazia saltar uma após a outra as tampas das garrafas, para dar aos espíritos quentes presos no cristal uma livre expansão. Era um cômodo estreito, com uma ampla janela gótica ao fundo, pela qual se via a noite que reinava do lado de fora. Enquanto Elvira recordava ao infiel todos os seus juramentos, via-se brilhar na janela frequentes lampejos, e se ouvia o surdo rugido do próximo furacão. Enfim, a porta é martelada por formidáveis golpes. Elvira e as duas jovens fogem e, entre assustadores acordes vindos do mundo dos espíritos subterrâneos, entra o abominável colosso de mármore, perto de quem Don Giovanni parece um pigmeu. O solo treme sob os fragorosos passos do gigante.

No rumor da tempestade, entre o fulgor dos raios e uivos demoníacos, Don Giovanni grita o seu terrível “No!”. É chegada a hora final. A estátua desaparece, um lento vapor inunda a sala e dele surgem terríveis fantasmas. Don Giovanni se contorce diante dos tormentos do Inferno, e aparece vez por outra entre os demônios. Uma explosão, símile à queda de mil raios: Don Giovanni e os demônios desaparecem, não se sabe como. Leporello jaz desmaiado em um canto da sala…

Certa vez, conversando sobre o Don Giovanni com um caro amigo, eu lhe manifestava minha perplexidade diante da coragem de Don Giovanni, e perguntava: como é que pode um personagem tão vil possuir tamanha “virtude”, sendo alguém completamente cético com relação ao mundo? O meu amigo disse-me: talvez por isto mesmo ele seja assim.

Talvez, talvez, pensei comigo mesmo. E aquela coragem trágica diante da morte, diante mesmo do inferno, da danação eterna, me assustava e fascinava ao mesmo tempo. Era a incarnação do amor fati bradado por Nietzsche, a quem eu então admirava.

Procurei paralelos na história da literatura. O final de Macbeth me forneceu um outro exemplo. Após ter visto a floresta de Birnam caminhar, após saber que Macduff não nasceu “do ventre de uma mulher”, o herói trágico ainda assim prefere lutar a batalha impossível:

Yet I will try the last. Before my body
I throw my warlike shield. Lay on, Macduff,
And damned be him that first cries, “Hold, enough!”

Personagens como Don Giovanni e Macbeth são fascinantes porque, apesar de toda ignomínia, a eles jamais se poderiam empregar os versos de Dante:

“Questo misero modo
tegnon l’anime triste di coloro
che visser sanza ’nfamia e sanza lodo.

Mischiate sono a quel cattivo coro
de li angeli che non furon ribelli
né fur fedeli a Dio, ma per sé fuoro.

Caccianli i ciel per non esser men belli,
né lo profondo inferno li riceve,
ch’alcuna gloria i rei avrebber d’elli”.

(…)

Questi non hanno speranza di morte,
e la lor cieca vita è tanto bassa,
che ’nvidïosi son d’ogne altra sorte.

Fama di loro il mondo esser non lassa;
misericordia e giustizia li sdegna:
non ragioniam di lor, ma guarda e passa”

De fato, a virilidade não é outra coisa senão uma abordagem trágica da vida.

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