Virilidade e Tragédia II — Tragédia, feminino e literatura

O Olavista
O Olavista
Published in
8 min readApr 20, 2020

La virilité est un abordage tragique de la vie: frase do francês Pierre-Yves Rougeyron, que já citei aqui. Supondo que Rougeyron esteja certo em sua afirmação, deve ser possível rastrear ao longo da história da literatura — que é, de um modo ou de outro, um espelho da vida e da história — essa abordagem trágica em personagens viris e, por sua vez, uma abordagem anti-trágica nos personagens femininos. É este segundo caso que pretendo investigar aqui.

Vem-me à mente, ao pensar em grandes personagens femininos na história da literatura, uma pequena lista: Eva, Helena, Jocasta, Antígona (?), Ofélia, Desdemona, Lotte (do Werther), Margarida (Fausto), , Emma Bovary, Anna Kariênina, Sônia, Clawdia (n’A Montanha Mágica), pretendo analisar brevemente aqui algumas destas.

Eva

— Sossega, meu amor! Que vale, enfim,
a glória lapidar que se interpõe
como fria serpente entre nós dois?
(…)
Agora, esquece-a!
Calaram-se os gemidos, não nos pungem.
Que queres mais, se em meu seio repousas?
Eva a Adão, em “A Tragédia do Homem” de Imre Madách

Comecemos pela primeira mulher: Eva. Na obra-prima da literatura húngara, “A Tragédia do Homem”, de Imre Madách (1823–1864), um longo poema dramático escrito em meados do século XIX, Lúcifer, aparece a Adão e Eva após a expulsão do paraíso e lhes mostra, numa visão onírica, todo o futuro da raça humana: impérios, revoluções, guerras, nas mais diversas épocas. Como diz Paulo Ronái, Madách “promove um comovente desfile de quadros representativos das sucessivas épocas, focalizando o que elas parecem ter de mais característico. Cada época realiza uma das grandes aspirações coletivas do gênero humano; tais realizações mostram-se tão imperfeitas, no entanto, que se sente o homem sempre insatisfeito, a buscar desiludido um caminho diferente, que não seja como o anterior”.

Eis a tragédia do homem. Mas será a tragédia do gênero humano, ou apenas do homem e não da mulher? Que papel desempenha Eva na tragédia do homem? No prefácio à tradução brasileira da obra, o próprio Paulo Ronái acena para qual seria esse papel, citando um dos exegetas da obra, Antal Szerb (1901–1945):

A grande luta de Adão e Eva é o eterno contraste entre o espírito e a matéria. Em termos de Nietzsche, Adão é o princípio apolíneo e Eva o princípio dionisíaco. Adão é a consciência clara, construtiva, que almeja altos objetivos e, não os alcançando, desmorona. Eva é o obscuro instinto atávico, a voz da Natureza dentro do ser humano, que não quer senão viver, e que para isso desafia o poder do espírito… Esta é a explicação final: a lógica, o espírito, Apolo, não vêem outra solução a não ser o aniquilamento; mas o instinto, a personalidade, Dionísio, grita que a matéria vive e quer viver”.

Não é a toa que no Gênesis, antes de criar a mulher, Deus leva o homem para que nomeie todas as coisas: nomear é uma atividade estritamente apolínea. Nomear é, de algum modo, instaurar uma ordem. Eva, o feminino, consola, mas também perde, o homem. Alivia o fardo de sua tragédia, acolhendo-o, maternalmente, no seio.

Helena

De Helena, não há muito que dizer: sua beleza é já um alívio, um consolo que faz esquecer, ainda que brevemente, a ferocidade trágica da existência. Mas esse caráter fica ainda mais claro se olharmos para a passagem da Odisséia em que — recebendo Telêmaco em seu palácio — , quando todos os corações estão tristes, fustigados por lembranças e cansaços, a divina Helena deita um fármaco na bebida de todos, que os faz esquecer da dor e da tristeza que provam. Eis o trecho do Canto IV, na tradução do Carlos Alberto Nunes:

Outro feliz parecer teve Helena, de Zeus oriunda:
deita uma droga no vaso do vinho de que se serviam,
que tira a cólera e a dor, assim como a lembrança dos males.
Quem quer que dela provasse, uma vez na cratera lançada,
não poderia chorar, pelo menos no prazo de um dia,
mesmo que o pai e a mãe cara privados da vida ali visse,
ainda que em sua presença, com o bronze-cruel, lhe matassem
o filho amado ou o irmão e que a tudo ele próprio assistisse.
(…)
… Às criadas a de Argos Helena deu ordens
para que os leitos com belos colchões sob o pórtico armassem,
de cor purpúrea forrados, cobertos, também, com tapetes,
para, por último, os mantos velosos por cima deitar-lhes.

Jocasta

Jocasta é um personagem feminino extremamente singular na história da literatura: mãe e esposa, ela encerra um duplo caráter feminino. É ela que tenta sempre frear o ímpeto ordenador de Édipo, e parece pressentir que o ato terrível que seu esposo está tentando desesperadamente descobrir. Quando, cheio de cólera, Édipo conta a Jocasta ter ouvido teria sido ele o assassino de Laio, é Jocasta quem tenta acalmá-lo, dizendo:

Não há razões, então, para inquietação;
ouve-me atentamente e ficarás sabendo
que o dom divinatório não foi concedido
a nenhum dos mortais;

E então ela lhe narra a história da profecia que lhe havia sido feita há tanto tempo, acreditando pode acalmar, assim, o marido, sem saber que com aquela história só lhe aumentava os temores e a aflição.

Mais adiante, ao ser indagada se ele, Édipo, não deveria amedrontar-se diante da perspectiva de partilhar o leito de sua mãe, Jocasta responde:

O medo em tempo algum é proveitoso ao homem.
O acaso cego é seu senhor inevitável
e ele não tem sequer pressentimento claro
de coisa alguma; é mais sensato abandonarmo-nos
até onde podemos à fortuna instável.

E já pressentindo a cumprimento do terrível fado, Jocasta tenta preservar o filho:

(…) Não penses mais nisto!…
Afasta da memória essas palavras fúteis.

Mas Édipo, o homem, o espírito, a razão, o apolíneo, precisa descobrir a verdade, e prossegue, insiste, debate-se por conhecer a própria desgraça. A esposa, a mãe, ainda insiste:

Peço-te pelos deuses! Se inda te interessas
por tua vida, livra-te dessas ideias!
(…) Escuta-me! Por favor: para!

E, continua ainda, na esperança de deter a cólera do filho:

JOCASTA
Move-me apenas, Édipo, teu interesse,
e dou-te o mais conveniente dos conselhos! 1260

ÉDIPO
Admito, mas esse conselho me desgosta.

JOCASTA
Ah! Infeliz! Nunca, jamais saibas quem és!

ÉDIPO
Ninguém trará até aqui esse pastor?

JOCASTA
Ai de mim! Ai de mim! Infeliz! Eis o nome
que hoje mereces! Nunca mais ouvirás outro!

A rainha sai desesperada em direção ao palácio. E não pode suportar a imensidão trágica daquele destino. Ao feminino, a aniquilação é preferível. Eis que, então, um criado entra em cena para relatar como a rainha deu cabo da própria vida:

Quando a infeliz transpôs a porta do seu quarto
lançou-se como louca ao leito nupcial;
com as duas mãos ela arrancava seus cabelos.
Depois fechou as portas violentamente,
chamando aos gritos Laio há tanto tempo morto,
gritando pelo filho que trouxera ao mundo
para matar o pai e que a destinaria
a ser a mãe de filhos de seu próprio filho,
se merecessem esse nome. Lamentava-se
no leito mesmo onde ela havia dado à luz
— dizia a infeliz — em dupla geração
aquele esposo tido de seu próprio esposo
e os outros filhos tidos de seu próprio filho!
Como em seguida ela morreu, não sei contar.
Aos gritos Édipo acorreu, mas também ele
não pôde presenciar a morte da rainha.
Os nossos olhos não se despregavam dele
correndo como um louco em todos os sentidos,
pedindo em altos brados que um de nós lhe desse
logo um punhal, gritando-nos que lhe disséssemos
onde se achava sua esposa (esposa não,
mas a mulher de cujo seio maternal
saíram ele próprio e todos os seus filhos).
Em seu furor não sei que deus fê-lo encontrá-la
(não foi nenhum de nós que estávamos por perto).
Então, depois de dar um grito horripilante,
como se alguém o conduzisse ele atirou-se
de encontro à dupla porta: fez girar os gonzos,
e se precipitou no interior da alcova.
Pudemos ver, pendente de uma corda, a esposa;
o laço retorcido ainda a estrangulava.
Ao contemplar o quadro, entre urros horrorosos
o desditoso rei desfez depressa o laço
que a suspendia; a infeliz caiu por terra.
Vimos, então, coisas terríveis. De repente
o rei tirou das roupas dela uns broches de ouro
que as adornavam, segurou-os firmemente
e sem vacilação furou os próprios olhos,
gritando que eles não seriam testemunhas
nem de seus infortúnios nem de seus pecados
“nas sombras em que viverei de agora em diante”,
dizia ele, “já não reconhecereis
aqueles que não quero mais reconhecer!”
Vociferando alucinado, ainda erguia
as pálpebras e desferia novos golpes.
O sangue que descia em jatos de seus olhos
molhava toda a sua face, até a barba;
não eram simples gotas, mas uma torrente,
sanguinolenta chuva em jorros incessantes.
São ele e ela os causadores desses males,
e os infortúnios do marido e da mulher
estão inseparavelmente entrelaçados.
Ambos provaram antes a felicidade,
herança antiga; hoje lhes restam só gemidos,
vergonha, maldição e morte, ou, em resumo,
todos os males, todos, sem faltar um só!

Por que Jocasta se mata enquanto Édipo prefere seguir o mais miserável dos destinos? Albert Camus observou bem em O mito de Sísifo que o suicídio não é a coroação de uma concepção trágica da vida, mas antes uma tentativa de negar essa concepção. Jocasta dá cabo da vida, enquanto Édipo segue um destino de Sísifo, destino de um joguete nas mãos dos deuses, cuja única liberdade é a de estar ali como testemunha.

Parece faltar — sua graça e sua fraqueza — ao feminino aquela ὕβρις (hýbris) da razão que deseja tudo entender, tudo controlar, que se recusa a abaixar a cabeça diante da Vontade universal. É, ao contrário, característica da virilidade essa avassaladora soberba, que mesmo quando derrotada, morre de pé, lutando, amaldiçoando. Pensemos aqui em Macbeth, em Aquiles, em Édipo caminhando cego para o exílio, amparando pela pela filha/irmã Antígona.

Suportar estoicamente ou lutar desesperadamente

Perdoem-me o clichê, mas não posso deixar aqui de pensar no célebre monólogo shakesperiano, pois nele podemos ver claramente o dilema trágico que parece tão estranho ao universo feminino:

To be, or not to be, that is the question:
Whether ’tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take Arms against a Sea of troubles.

O que é mais nobre?

Édipo prefere suportar os dardos e arremessos do fado adverso; Macbeth, por sua vez, prefere armar-se contra um mar de tribulação, ainda que saiba que está fadado a perder a batalha.

Contudo, quando olhamos para as respectivas mulheres, há sempre uma terceira via: Jocasta, como já vimos, diante da perspectiva assustadora, enforca-se. Lady Macbeth, atormentada pelo sangue inocente que lhe impregna as mãos e o olfato, também escolhe o suicídio, que não deixa de ser uma solução para o drama trágico.

Frailty, thy name is woman! exclama Hamlet ao lembrar como sua mãe desposara o tio pouco tempo após a morte de seu pai. Frailty (do latim fragilitas) literalmente significa fraqueza, delicadeza, especialmente no sentido moral, como fraqueza de caráter. E a frágil Ofélia, enlouquecida após o repúdio de Hamlet e a morte do pai, busca o refúgio possível no fundo das águas, escapa diante daquele destino terrível que a apavora. O príncipe vai até o fim, até poder dizer, quando tudo está acabado, que the rest is silence.

Gostou desse texto? Deixe seus aplausos clicando até 50 vezes no botão aqui do lado ou lá em baixo, isso ajuda esse post a ter mais visibilidade. Aproveite para nos seguir aqui no Medium clicando no botão ao lado da minha foto.

--

--