Impressão

Rita Serra (A costureira)
Coisas de aurtistas
4 min readApr 10, 2021
Rosebonbon https://www.youtube.com/watch?v=XAD5W6Y3Vnk

Que coisa.

Que coisa perturbadora.

Somos mesmo água.

Somos mesmo água, a brincar uma com a outra, a atirar pedras uma à outra, não para magoar (como é que se magoa a água?), mas para ver o que acontece. Para investigar. Para indagar. Para sondar. E a sonda é vibração. E o que é é o que aparece.

Uma fotografia.

Uma impressão.

Uma impressão curiosa e perturbadora.

Perturbadora, porque o que vejo não quero ver, e o que vejo é o que quero ver.

Vejo uma menina.

Vejo uma mãe que é dona da menina.

Vejo uma mãe que é dona daquela impressão daquela menina.

Vejo uma menina pequenina.

Vejo uma maquilhagem.

Vejo olhos.

E depois faço por não ver.

Faço por apagar tudo o que vi.

Faço por apagar, porque nada disto é na verdade o que vi.

Posso dizer que vi estas coisas porque aprendi a ver.

Estas coisas poderiam servir-me para conversas de circunstância.

“Ai que gira! Olha tu em pequenina! Com um boneco! O que era? Ah, que querida com bochechas pintadas! Pareces a boneca da Rosebonbon no “Olha a Mina Bailarina!”

Tudo mentira.

Tudo circunstâncias.

Tudo nada do que vi.

Tudo irrelevante.

Não vi uma menina pequenina.

Não vi, porque também não vejo uma menina crescida.

Não vi uma maquilhagem. Vejo um olhar, uma cara, sempre a mesma cara.

É essa mesma cara que me interessa.

É essa mesma cara que é actual.

É essa cara que corresponde à impressão da Berta pequenina que tenho na minha cabeça.

A Berta pequenina não é uma menina.

A Berta pequenina é uma bonequinha que eu tenho dentro de mim, internalizada.

A Berta é uma das minhas figuras.

A Berta é um dos meus objectos internos.

Esse objecto interno Berta fez-se no dia em que a conheci.

Foi no Parque Verde, depois de qualquer coisa importante, tão importante que já não me lembro.

Deve ter sido depois dum evento, uma celebração institucional num dia qualquer em que estava sol.

Numa data qualquer muito significativamente insignificante.

Juntou-nos numa esplanada.

Falavas de Angola.

Alguém falava de colonialismo.

Alguém falava de violência.

E tu falavas como se fosses um soldado com uma arma na mão, a descarregar.

Tu vestias a pele do soldado armado a descarregar.

E a cara que tinhas era a mesma que tinhas nesta impressão.

Esta cara de quem “cheirou pum”.

Dizia um amigo: os bebés, quando são pequenos e se borram todos, ainda não sabem se aquele cheiro é bom ou mau.

Só sabem que é um cheiro intenso e então isso interessa-os.

Cara de quem cheirou pum. Será uma apuria? Palavra que disseste e que não conheço, e que me interessou.

Cara de antes de julgamento.

Cara de inspiração.

Cara de quem inspira — quem respira para dentro.

Cara de quem faz…

Cara de quem faz…

Cara de quem representa para dentro e não para fora.

A ver se me faço entender.

É que infelizmente parece-me que se confunde teatro com projecção.

Parece-me que infelizmente se apagam os actores no teatro, como se apagam os músicos numa orquestra.

Parece-me que se apagam os artistas quando fazem arte, porque são perigosos.

Parece-me que querem o nosso corpo para que façamos coisas para eles.

Parece-me que querem máquinas vivas que incorporem os sonhos deles.

As projeções são coisas do falso ser.

As projeções são coisas de gente que não existe e que por isso projectam.

As projeções são de seres vazios ocupados por sombras.

Mas tu respiras para dentro.

Tu inspiras antes de expirar.

E é essa cara de pum que é cara de inspiração.

E é essa cara que eu vejo sempre.

Como se tivesses sempre a mesma cara.

Como se tivesses sempre a mesma expressão.

Será que ter sempre a mesma expressão nos permite expressar-nos?

Será que ter sempre a mesma expressão nos permite ter muitas expressões?

Cara de pum é cara de intriga.

Intriga, quando ainda não descortinamos de que se trata.

Intriga, esse primeiro ponto em que reparamos nalguma coisa sem saber no quê.

É a firstness do Charles Peirce.

É aquele cheiro esvoaçante.

Aquele cheiro antes de estar ligado a uma cadeia semiótica.

Aquele signo livre.

Aquela existência prévia.

Aquela existência pré-condição de qualquer coisa.

Tens cara de quem existe.

Tens cara de quem representa a vida.

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