Nunca conheci ninguém como tu

Rita Serra (A costureira)
Coisas de aurtistas
3 min readApr 9, 2021

Foi o que me disse uma amiga quando a acabei de conhecer. Ainda não a voltei a encontrar. Mas acho que era amiga. Senti que era amiga. Como é que eu sei?

Não é amiga como as outras. Não crescemos juntas, não andamos juntas na escola, não passamos desafios, não seguramos a mão uma da outra, ainda. Não conhecemos as filhas uma da outra, ainda. Mas quem sabe? Talvez nunca o façamos.

Se não somos amigas como as amigas são, somos o quê? De onde vem a afiliação?

Porque a amizade é, na verdade, uma forma de filia.

Uma a-filiação.

Uma forma de kind, não necessariamente de kin.

Diriam, talvez isto, algumas amigas feministas como a Donna Haraway.

Amigas que não conhecemos de lado nenhum.

Podemos chamar de amigas a escritoras, sejam elas vivas ou mortas?

Podemos chamar de amigas, a pessoas que escreveram livros e que nunca conhecemos, mas com as quais estabelecemos intimidades com livros?

Dizia à pouco a um amigo: as pessoas não sabem ler.

Podem saber ler, conhecer os símbolos das letras (ou serão icons?), mas será que sabem o que é um livro em termos de tecnologia? Em termos de metodologia?

Será que sabem o que é a escrita e para que serve?

Podemos dizer que a escrita foi inventada pelos estados.

Podemos dizer que a escrita foi inventada para a distância.

Podemos dizer que a escrita foi inventada para a correspondência à distância.

Podemos dizer tanta coisa.

A escrita é para os outros, ou para nós?

A escrita é para ser lida, ou narrada?

E quando os escritores não têm opção senão escrever?

E quando os escritores se narram?

Porque o que é o texto, senão um tecido.

O que é o texto, senão uma trama.

Se calhar, ao escrever juntas, estamos tramadas.

Mas não escrevemos juntas.

Nem sei bem, mesmo se quiséssemos, se sabíamos escrever juntas.

Nem sei bem se sabemos, mesmo que quiséssemos, conversar.

As pessoas valorizam demais a conversa hoje em dia.

As pessoas valorizam de mais a conversa sobre os monólogos.

Penso em monólogos, mas que sei eu? Quantas mais figuras, mais formatos artísticos, poderão haver.

Não sei nada.

O que sei é que não gosto que exista só um formato de coisa nenhuma.

O que sei é que não gosto que exista só uma coisa de coisa nenhuma.

Gosto de diversidade.

A diversidade é sempre um problema e uma solução.

É um problema, porque se há diversidade é porque há um outro — pelo menos um outro ser.

Gosto de diversidade porque quer dizer que não estamos sozinhos.

Se não estamos sozinhos se calhar já não é monólogo.

E se escrevemos de forma pública, vai haver quem lê.

Mas não sei quem.

O meu leitor, leitora, leitores, é, ou são, seres inconcebíveis.

Escrevo como quem atira garrafas ao mar com papelinhos lá dentro.

Escrevo sem saber quem lê ou se será lido.

Escrevo para as últimas pessoas da terra, as que ainda são pessoas.

Mas que sei eu de pessoas? Ainda menos sei de coisas.

Escrevo para duas coisas.

Escrevo para comunicar.

Escrevo para me narrar.

A escrita também serve de narrativa.

E a narrativa compõe o ser.

Dizia o Illich e o Sanders que o ser pode estar em extinção se não há narrativa.

Mas o que é a narrativa senão uma grande ausência de figuras?

“Acordo de manhã e tenho a cabeça cheia de textos”.

Quero pari-los.

Quero ver-me livre deles.

Quero arranjar o novelo.

Quero pentear os cabelos mas não domá-los.

Escrever para alguém sem saber quem é, sabendo. Que prazer.

Que prazer de escrever, como se fosse outra, porque quem escreve não é quem pensa, porque quem pensa não escreve, e quem escreve não pensa.

Que prazer é… adivinhar.

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