1. O Mecanismo Básico

Luis Fernando Santos
Coisas que Escuto
Published in
5 min readJan 12, 2018

Grosso modo, o conceito de neurose na psicanálise começa a se formar em torno da descoberta que Freud nomeou solução de compromisso. Ou seja, como determinados conteúdos do inconsciente não podem chegar à consciência (por estarem em conflito com a moralidade), esses conteúdos são recalcados, ficam presos no inconsciente. Mas um conteúdo relacionado a eles, distorcido e mascarado, aparece no consciente. Mais precisamente, no mundo, na carne, como a paciente de Freud Katherina, que passou a sofrer de dores e paralisias nas pernas ao recalcar inconscientemente a ideia de que poderia namorar o cunhado, esposo da irmã que acabara de morrer.

Com a teorização da segunda tópica (em que Freud divide a psique entre ego, id e superego) a noção de neurose evolui para um conflito entre as necessidades do id e o mundo real. O id seria o depositório e origem das pulsões, necessidades energéticas sexuais/corporais que necessitam serem descarregadas no mundo. O problema é que essas pulsões não tem moralidade, não respeitam princípios da realidade. Sabem disso todos que já sonharam que roubavam, matavam ou transavam com parentes. Muitas vezes o horror desses sonhos vem apenas ao despertar, quando o conteúdo manifesto do sonho entra em conflito com a moralidade do superego, representante da realidade compartilhada.

Assim, a segunda tópica enseja uma noção que só se transformaria um pouco nos anos 60: a neurose como o inverso da perversão. O neurótico respeitaria a realidade, por isso recalcaria uma ideia impensável (que está energizada por uma pulsão) para o inconsciente (ou seja, cria-se um conflito entre o id e o ego). Já o perverso se daria o direito de exercer a sexualidade infantil, perversa e polimorfa, no mundo real. Completando a tríade, a psicose seria um conflito entre o ego e o mundo externo, ao qual o sujeito teria dificuldade de se adaptar (ou simplesmente burlar as regras e pronto, como o perverso), criando para si um mundo próprio e alucinatório, completamente fora da realidade compartilhada.

Mas essa é apenas uma parte da história. Freud mesmo, que sempre adorou ter uma teoria fechada, sem espaços para exceções, admirava-se com a maneira como a neurose alija o sujeito da realidade. O mecanismo de supressão de uma ideia, através do recalque, para o inconsciente (que é, como sabemos, o que forma o sintoma, a doença) vira um vício, um remédio contra todos e quaisquer males pulsionais que necessitam de negociação com o mundo para poderem ser descarregados.

O neurótico perde essa habilidade de diálogo com a realidade, em que um desejo pode ser realizado, mas não plenamente: adaptado, transformado criativamente. Perde-se a capacidade criativa de negociar com o mundo. A tolerância a qualquer frustração cai a zero: pra que ceder, por menos que seja, na minhas necessidades se eu posso apenas fingir que elas não existem e não me frustrar nada?

Passa-se então a viver num mundo diminuto, num pequeno recorte de realidade, dogmático, em que as coisas são assim porque são assim, em que algumas possibilidades não são cogitáveis porque não existem e os caminhos possíveis são poucos, regrados e determinados. Um mundo alucinatório; nada mais louco.

A saída desse curto-circuito é simples e o próprio Freud já sabia dela muito bem pelo menos desde 1915: a pulsão, a necessidade energética, não tem um destino determinado. A maneira como ela será descarregada pode ser escamoteada, negociada com a realidade. Sabem muito bem disso aqueles que descarregam suas pulsões sexuais em carros e relógios caros (com um sucesso relativo) ou, (exemplo de Freud) os que deslocam seus ímpetos agressivos de retalhar um ser humano para a atividade de cirurgião (com muito mais sucesso e aceitação da sociedade nesse caso).

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Contam-me vários pacientes, geralmente jovens, do desejo que tem de morar fora do país. As histórias mudam pouco: às vezes aparece um país mais exótico, fora do eixo Europa-Estados Unidos. Outras vezes o desejo é completado pela esperança de se achar um amor, um curso ou emprego que lhes dê alguma vantagem competitiva no mercado de trabalho ao retornarem ao país. Alguns, mais corajosos, admitem que estão apenas entediados com sua vida no país.

Mas uma coisa nunca muda: a pobreza afetiva que ronda esse desejo de se morar no estrangeiro. Apesar de enxergarem que todas as possibilidades estão lá (em detrimento daqui, onde não há nenhuma — o absolutismo psicótico aparecendo na neurose), eles não conseguem fantasiar ou divagar sobre essas possibilidades. Não conseguem namorar as mil peripécias e descobertas novas que, supõem, existem no destino tão desejado. Por mais objetiva que seja, qualquer noiva faz um enxoval, físico e psíquico e sonha como será a vida após o casamento, nos mínimos detalhes.

Essa capacidade de flanar pelos próprios pensamentos e fantasias está ausente nesses pacientes. Exatamente porque a pulsão foi deslocada e concentrada numa única ideia pequena e tímida, mas que toma toda a psique. Uma proto-realidade, alucinatória.
Torna-se impossível sonhar a realidade, seja em sono ou vigília, porque a necessidade pulsional está bloqueada ao se ligar de maneira obsessiva a uma única ideia, destituída esta de multiplicidade de possibilidades reais. A necessidade pulsional real, claro, é outra. Claro, específica de cada sujeito, mas geralmente ligada à necessidade de liberdade, de manter-se em pé por si mesmo, de emancipar-se da família, de sentir-se valorizado num círculo social esquecendo de vez o bullying sofrido na escola. Mas substitui essas necessidades ultra-legítimas e complexas uma ideia única, mirrada; a panaceia do pacote de intercâmbio.

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Esse é o mundo alucinatório neurótico. Ao invés de encarar as verdadeiras questões da vida (difíceis e doídas, você imaginava o que?), o neurótico desloca suas energias para questões e situações banais e sem importância, mas que passam a ser a totalidade de sua realidade. Os mais simples passam a viver recatados, conversando apenas com sua ideiazinha, fechados (que outro assunto teriam para tratar com as pessoas do mundo? A neurose é, muitas vezes, uma doença de alcova). Os mais extrovertidos podem beirar a mania, divulgando ao mundo de maneira monotemática e monótona a sua ideia, surpreendendo-se e recuando a si indignados quando os outros não partilham o mesmo interesse absoluto pelo assunto.

Não adianta, claro, mostrar isso a tais pacientes, interpretar que o desejo verdadeiro é outro e que liberdade pode ser encontrada ali na esquina. A neurose é apenas aparentemente racional. Na verdade ela é a racionalidade de fatos (ultra)selecionados. É mais útil rondar a ideia, conversar com ela para, comendo pelas bordas ao longo de várias e várias sessões, deixar que a própria ideia se perceba um balão de ensaio. Cansativo, doído e frustrante. Mas a ideia desgastada e superada pela fala deixa espaço para que os verdadeiros conteúdos possam aparecer. Na verdade, deixam com que as pulsões possam se ligar a ideias mais próximas de seu real objetivo, tornando a realidade psíquica menos alucinatória.

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