2. Angústia

Luis Fernando Santos
Coisas que Escuto
Published in
7 min readJan 31, 2018

O neurótico é, antes de tudo, um ser angustiado. Uma angústia difusa, sem motivo específico. O que traz a pergunta: o neurótico tem angústia de quê, afinal?

O velho Freud se ocupou do tema desde pelo menos 1916. No começo, na chamada primeira teoria da angústia, a relação era bem direta: um conteúdo era reprimido ao inconsciente e a libido (energia ligada a esse conteúdo) ficava de certa maneira solta na psique, um terror sem nome, gerando angústia.

Dez anos depois, um Freud mais maduro e com uma visão menos biológica, altera sua teoria. Nesse momento a angústia é um produto direto de processos da psique como um todo, não um elemento estranho, uma espécie de tilt. Na segunda teoria da angústia o ego tem função predominante: diante de um conteúdo ele gera a angústia que ativa o sistema de recalque do conteúdo. Ato-contínuo, o sintoma é formado. A formação do sintoma é um processo do ego. E a angústia, antes sub-produto do processo de recalque torna-se a protetora, o sinal de alerta da psique contra um conteúdo que não poderia ser tolerado.
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Voltando à pergunta inicial: qual é o conteúdo intolerável? O neurótico tem angústia de que? De maneira prototípica, para Freud ele tem medo da castração; o mesmo Freud lembra que a mulher não poderia sofrer de tal angústia, então propõe um fórmula mais abstrata para dar conta: o neurótico teme a perda do objeto.

Muitos foram os autores que, concomitantemente ou posteriormente, tentaram dar uma forma mais objetiva, prototípica a esse objeto: falam da angústia do nascimento, do desmame, da castração simbólica (de novo). Em todos podemos ver a tentativa de determinar que o que está sendo ameaçado de perda é um lugar confortável, estável, que, diferentemente do mundo real, preserva a existência (o útero seguro, o seio que alimenta, a mãe que cuida).
Ora, nada mais diferente do mundo real adulto, que tem exigência práticas, que outorga a cada um o direito e a obrigação de refletir, tomar decisões, abrir mão de algumas coisas por outras. O neurótico é um adulto chorando hoje por ter sido desmamado há décadas.
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Mas o neurótico descobre rápido maneiras de sobreviver a essa angústia inconsciente. O ego — sempre tido como fraco, mas na verdade habilidoso e atuante — passa a vida na tarefa maníaca e ingrata de construir um novo útero, um novo seio, uma nova cuidadora com a qual possa contar de maneira plena. Como o objeto não é definido, esse desejo/angústia pode se ligar a qualquer coisa e a sociedade atual é coalhada de coisas a serem enganchadas. Alguns se refugiam no trabalho, na família, na religião. Há o consumo, o status, o casamento perfeito, títulos, prêmios, reportagens na imprensa. Ou até um canal com muitos seguidores no YouTube.
Podem vocês me perguntarem o que poderia haver de errado se uma neurose levasse a uma vida de trabalho seguro, família perfeita, títulos e reconhecimento. Contextualizo que nem de longe a coisa se dá dessa maneira; a angústia está sempre presente e a projeção inconsciente é o caminho mais fácil para meter feio os pés pelas mãos. (O mundo corporativo capitalista, por irracional, é uma notável exceção; se desconsiderarmos a questão moral, nada melhor que um neurótico obsessivo desperdiçando sua vida por uma empresa). Mas respondo à pergunta do início do parágrafo em dois tópicos:

1- A falta de verdade e autenticidade das escolhas tomadas para realizar o desejo de um novo útero. É uma vida escolhida a partir não de elementos próprios do sujeito, uma descoberta de seus desejos e potencialidades, mas uma pura resposta alucinatória ao medo e à angústia. Não bastasse o incômodo no brio do sujeito que isso pode causar, esse é um cenário propício a doenças causadas por um verdadeiro self esmagado. Eu citaria o que a psiquiatria chama de síndrome do pânico e depressão (claro, não são todos os casos).

2- A angústia continua lá. Mas agora cada vez mais inacessível à elaboração, por quê agora ligada a um objeto, estritamente. “Tudo estará perdido se eu perder meu emprego/esposa/reconhecimento/título/canal do YouTube”.

Os sinais claros dessa transposição de toda esperança por um novo útero para um objeto determinado o velho Freud já sabia: a reação demasiada pela possibilidade de perda. O fim de um emprego, um casamento ou uma posição social são, inegavelmente, mobilizadores. Pode parecer muito bom que eles não aconteçam, mas, na esmagadora maioria das vezes, o acontecimento deles está longe de ameaçar o sujeito com a aniquilação com o “tudo estará perdido se”. Talvez essa seja a faceta mais triste e patológica da consecução da criação de um novo útero: a anulação da capacidade criativa do sujeito para lidar com o que é apresentado pela vida. Vivendo em seu minúsculo recorte da realidade o neurótico não consegue tolerar interferências externas. Afinal, gastou a vida construindo para si um lugar separado do mundo externo, em que não há falta nem necessidade, portanto também não há desejo nem necessidade criativa de lidar com elementos reais apresentados pela vida.

Ameaçado com a perda do objeto, o neurótico entra em parafuso. O pretenso equilíbrio de repressão e sintoma não se sustenta mais e a angústia toma conta de toda a psique, num surto. Por estranho que pareça, esse é o melhor cenário, porque as defesas terão chegado a um limite e estarão propícias a liberarem os conteúdo recalcados. Numa análise, esse tipo de surto neurótico é sinal de uma nova vida!
O mais comum, entretanto é que o ego e as defesas se unam com muita força para evitar esse cenário e manter o neurótico preso a seu útero de papel machê.
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Conta-me um paciente de como seu pai perdeu quase todos os bens da família pela dificuldade em geri-los quando o dinheiro se tornou escasso. Carros, apartamentos, casas de praia, iam indo-se um atrás do outro, de maneira irremediável. O processo todo levou tempo (e, claro, foi terminado com uma derrocada financeira monumental), mas esse pai nunca conseguiu replanejar a vida financeira da família para que as perdas fossem menos drásticas, um bem cobrindo o outro, por exemplo, ou todos em função de um carro ou uma casa específica que pudesse proporcionar conforto à família.

Durante todo o tempo, entre buscas e apreensões de veículos e leilões de imóveis, seguiam-se viagens internacionais para toda a família e finais de ano bancados para dezenas de pessoas. Um modus operandi claramente maníaco, numa personalidade que me parece apenas tipicamente neurótica (posso dizer isso porque o caráter maníaco arrefeceu depois que as coisas ficaram insustentáveis). A vida num mundo alucinatório, não-real, tudo em favor de um único propósito: não deixar tornar consciente a angústia cavalar que se esconde no inconsciente pela perda do objeto.

Sem objeto determinado, a angústia pode se ligar a qualquer coisa. Contam-me de outro pai que não consegue permitir ao filho tocar a empresa da família, mesmo, ao que me parece, sendo essa nova gestão inovadora, exatamente o que a empresa de mais de 40 anos precisa. Jovem e criativo o filho quebrou o status quo da empresa (que, percebeu, a médio prazo a levaria à falência) e começou, com muito carinho a adapta-la a uma nova realidade. Mas o velho pai não podia tolerar isso; não tinha uma crença diferente, nem sabia propor um plano alternativo, mas punha senões em tudo, sempre com uma enorme dose de angústia que o filho não conseguia entender. Questionava com uma força desproporcional, por exemplo, pequenos investimentos em comunicação que, apesar dos resultados rápidos e claros, ele via como desperdício, dizendo diversas vezes que o filho levaria e empresa à falência com essas despesas, que eram mínimas.
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Um neurótico nunca gosta de estar sozinho; ele precisa que os que o cercam partilhem da mesma ideia neurótica, por mais irreal que seja. E se esforçam muito pra isso. Nos dois casos, os filhos sofreram muito e “neurotizaram”, como se diz de maneira popular. Os conceitos paternos, colocados com tanta força e certeza, os fizeram questionar sua própria leitura da realidade numa espiral neurótica do tipo “eu não consigo parar de pensar” que os enlouquecia.

Em muitos casos em que esse útero criado — os objetos em que são investidas as necessidades de estabilidade da vida — recebe uma resposta positiva da realidade por longo tempo (mesmo que de maneira alucinatória), a maneira de viver, o próprio way of life vira a totalidade do objeto que não se pode perder. Confirmado, de uma maneira muito torta, pelo mundo, a vida criada pelo neurótico vira a única possível, que precisa ser ensinada e forçada a todos: familiares, funcionários, colegas. Afinal, ela é a única possibilidade de vida — há provas disso! — que pode existir para que vivam todos em segurança.
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Nem todos tem esse azar; para alguns a vida apresenta, generosamente, elementos que forçam a mudança. Contam-me de um pai, homem letrado, trabalhador exemplar. Controlador como poucos, tudo se opera através de planilhas, mesmo uma viagem de recreação com a esposa. Até que nasce um filho autista, que não suporta o toque. Planilhas então…

Claro, as saídas neuróticas estão à mão e tem garantia de funcionamento; o pai as usa, tenta curar o filho pelo controle, pelas planilhas, pelos terapeutas que, juntos, serão a conta perfeita que somará 100%. Mas não tem nenhum resultado.

Um caso emocionante, em que o amor pelo filho faz o pai procurar análise e dar-se ao árduo trabalho de desmontar seus aparelhos neuróticos para poder se conectar com alguém amado, mas que fala uma língua completamente diferente da sua.

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