3. Dedo podre

Luis Fernando Santos
Coisas que Escuto
Published in
5 min readMar 26, 2018

“Até que você torne o inconsciente em consciente, aquele irá direcionar a sua vida e você irá chamá-lo de destino.”

- Carl Jung

Resumido de maneira quase poética nesta frase batida de Jung, está um mecanismo muito caro à psicanálise e primordial no entendimento da neurose: a projeção. Esta é a capacidade da psique de atribuir a outras pessoas ou objetos elementos inconscientes do próprio sujeito. [Note-se que Freud primeiro cita esse conceito em relação com, vejam só!, a paranoia.] Esse é o mecanismo básico, que já caiu até no popular, mas o que o colore (de cores nem sempre boas de se ver) é que a fantasia engendrada por uma projeção não tem limites. Algo aparentemente simples do inconsciente neurótico pode gerar uma fantasia enorme e intrincada, potencializada por elementos escolhidos a dedo daquele pequeno recorte da realidade de que já falamos.

Contam-me sobre a vida maravilhosa e recheada de sexo e felicidade que o ex-cônjuge deve ter agora “que me abandonou”, quando sei que o dito cônjuge está na verdade numa crise com a vida e tendo problemas para o sexo. Nem vale a pena retrucar ou ponderar; a fantasia está vivíssima, alimentada por posts de Facebook ou comentários dos amigos, todos devidamente inconscientemente selecionados para corroborar com a tese.

Esse tipo de fantasia é muito difícil de desmontar fora do consultório, porque o neurótico é extremamente apegado ao que ele chama de “realidade”. Uma realidade sempre cruel, objetiva e racional, porque a ditam dois fenômenos:
1- Um superego engrandecido, potencializado por uma série de defesas, que persegue o sujeito com condenações e material para histórias tristes à vontade. Já cheguei a ouvir de pacientes neuróticos a frase “parece uma vozinha aqui que fica me falando que tudo vai dar errado”. Há algo mais psicótico? Há: em alguns casos o ego fica tão diminuído que o superego passa a ocupar o espaço daquele, ditando um mundo de regras e tragédias. [Apenas relembrando que a tomada da psique pelo superego é a descrição mais clássica da gravíssima melancolia, um transtorno da ordem das psicoses]
2- Quase como consequência do item anterior, o neurótico perde toda a capacidade de sonhar. Explico: ele esquece que aquilo que chamamos de realidade simplesmente não existe. Esquece que a relação entre as coisas nem sempre é causal, que tudo é multifacetado e o comportamento e os acontecimentos não podem ser explicados simplesmente por fatos. Não, pra ele está tudo explicado, concatenado, factual. Por isso, no consultório, é típica a fala encadeada, causal; eventos narrados apenas de maneira justaposta, sem interpretação, sem cor. Os sonhos, sempre factuais, objetivos, curtos, sem simbologia.

Repetidos à exaustão durante muitos anos, essas projeções do inconsciente levam a uma frase comum no meu consultório: “eu tenho o dedinho podre”. Ou seja, diante de um punhado de coisas para escolher, das quais muitas seriam boas, o paciente julga ter a habilidade de, ao acaso, escolher as coisas ruins. Friso o ao acaso: sempre que ouço essa frase tenho a sensação clara de que o dedinho podre retira completamente a responsabilidade do paciente pela situação, como se o dedo podre fosse uma faculdade com a qual ele nasceu.

O dedinho podre é o destino da frase de Jung: elementos inconscientes que agem como um óculos que seleciona o que sujeito vê. Em alguns casos uma grande parte de todo o engajamento social do sujeito está ditado por esses elementos inconscientes projetados. Um grande sinal desse processo é o tamanho da fantasia que vem seguida da projeção. Muito energizada, longa, cheia de detalhes, ocupando parte desproporcional do pensamento.
A fantasia normal e sadia é prazeirosa e passageira. Serve para sonharmos acordados, criarmos, namorarmos ideias novas sem precisarmos de nenhuma correspondência do mundo! Mas o neurótico fantasia de maneira maníaca. Na minha experiência, a diferença para a psicose é que, muitas vezes, a fantasia pode se resumir a uma frase, dura como um dogma: É assim e pronto.

Imaginem a dificuldade no manejo no consultório de tal situação: responsabilizar uma pessoa pelo seu próprio sofrimento. Parece desumano. E na prática é também muito improdutivo se for feito desse modo direto. Já vimos que as fantasias proporcionadas pela projeção não cedem a uma reinterpretação racional. Vamos comendo pelas bordas, circundando os conteúdos, apostando na técnica da associação livre. E tudo vai se dando bem com o tempo.

Mas depois tudo também vai se dando mal, porque a projeção é mais do que um mecanismo isolado na mente, como uma ferida. Ela não é um fato inconsciente que se descobre, como um detetive e faz cair tudo que é alucinatório. A projeção e a fantasia que ela gera viram com o tempo um modus operandi da psique; são uma teia intrincada de conteúdos, espalhados pela memória e pelo inconsciente. Daí a repetição neurótica: quando uma parte da rede de pensamentos e conteúdos é tocada ela se fecha, se protege, se defende. Então o insight que fez tanto pensar vira, na semana seguinte, a repetição do mesmo ato.

Mas uma coisa não muda: a partir da primeira descoberta nada mais é igual; o paciente agora sentiu o gosto da liberdade e quer mais.

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Conta-me uma paciente sobre seus casos amorosos. Homens diferentes entre si, mas iguais em sua fantasia. Ou pelo menos nos únicos pedaços deles que ela se deu o trabalho de considerar ao engatar uma relação amorosa. São sempre “bem resolvidos” o que quer dizer financeiramente estáveis e promissores. Ela mesma tem uma condição financeira bem razoável e uma carreira super promissora, não precisaria de um casamento de situação, que lhe desse acesso a bens ou oportunidades reservadas às classes altas no nosso país. Mas essa é a primeira coisa em que pensa, seja num relacionamento mais sério, seja numa date arranjada por aplicativo de namoro.

Claro, a fantasia tem muitos recheios: um marido com posses é pré-condição para se ter filhos hoje em dia (ela jura que quer ter filhos, mas sabemos que as mulheres quando querem ter filhos simplesmente os tem; ela nunca teve sequer uma suspeita de gravidez); ela namora as possibilidades que uma vida estável e sem preocupações lhe dará. Ela não quer luxo (que poderia até me parecer um querer legítimo). Ela quer estabilidade.
Os relacionamentos inevitavelmente acabam. Na verdade, eles minguam; namoros de anos terminam de maneira melancólica, meio sem razão, meio por acaso. Mas a razão estava lá o tempo todo: nem o mais obtuso dos homens (e eles são bons nisso) fica muito tempo num relacionamento cheio de um amor pobre, operacional, projetado.

Quando perguntada por quê não tenta amores diferentes, talvez mais impulsivos, mais sonhadores, com menos conteúdos objetivos, ela me repreende, rindo de deboche. Afinal, já está ficando velha para ter filhos (me conta estatísticas irreais sobre o aumento de chances de um bebê nascer com defeitos congênitos em gravidezes após os 30 anos) e não tem nenhum interesse em homens diferentes e ponto. Pondera que vai dar certo, que está tentando, mas que deve ter o dedinho podre.

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