Nós “matamos Deus” quando o tornamos inconfiável

Vítor Carvalho Ferolla
Coisas velhas e coisas novas
2 min readApr 3, 2021

Por: Tomáš Halík*

Uma interpretação da declaração “Deus está morto” ou “Deus morreu” alega que essa sentença expressa a experiência segundo a qual o discurso tradicional sobre Deus — até mesmo a própria palavra — teria perdido qualquer sentido. Talvez possamos redescobri-lo — mas apenas olhando para Cristo. A antiga fala sobre Deus se tornou incompreensível e implausível: Ela não conseguiu nem mesmo motivar-nos em face da violência, mentira e hipocrisia para despertar a consciência em medida suficiente. Em vez disso, nós a usamos para nos tranquilizar e entorpecer, quando deveríamos ter nos inquietado e despertado; muitas vezes, nossas palavras perderam o forte gosto do sal e assim perderam qualquer valor. Por isso, “Deus morreu” — na língua de nossos contemporâneos; “nós o matamos” quando esvaziamos seu nome e o tornamos inconfiável, quando o estampamos em nossos estandartes de guerra, quando o usamos como artefato nos discursos de propaganda política com seus próprios interesses de poder, quando o jogamos na lama dos panfletos de “demonstrações” forçadas e dos barris cheios de lixo hipócrita e frases sentimentais.

O único lugar em que a Palavra de Deus esquecida, ferida e agora temerosa pode recuperar algum sentido é a história de Jesus. Mesmo que o mundo inteiro se encontra à sombra da “morte de Deus”, existe lá o único lugar em que Deus pode ser vivenciado como vivo: em Cristo, em Jesus de Nazaré. Tudo que nós “sabíamos” e dizíamos sobre Deus, pode e deve morrer — não conhecemos Deus, senão naquilo que se dirige a nós em, por meio em com Cristo. O mundo tem um sentido apenas porque Jesus passou por ele, exclama Bonhoeffer nos passos de Paulo e Lutero. Todo o resto me parece lixo, sujeira, escreveu literalmente o Apóstolo Paulo — quero conhecer apenas Cristo e este crucificado.

*Tomáš Halík é um padre católico, filósofo e teólogo checo.

Fonte: Toque as feridas, p.61, editora Vozes.

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