O adultério e a fome espiritual por intimidade

Vítor Carvalho Ferolla
Coisas velhas e coisas novas
3 min readApr 26, 2024

O moralista clássico Aristóteles, que viveu quatro séculos antes de Jesus, também sustentou que o adultério é simplesmente errado. Segundo ele defendia, não existe algo como “cometer adultério com a mulher certa, na hora certa, da forma certa… já que o adultério é simplesmente errado.” Até meados do século XX, a posição geral era de que essa perspectiva estava correta.

Hoje, claro, esse ponto de vista mudou quase que por completo. Atualmente, seria difícil descobrir qualquer autor de ética que considerasse o adultério como simplesmente errado. Na verdade, quase tudo que envolve relações sexuais é tido por correto hoje em dia, desde que ambas as partes estejam de acordo. Segundo alguns, não havendo concepção não haveria adultério, já que, desde o início, a “verdadeira” proibição não diz respeito à relação sexual, mas à inclusão de uma criança na relação conjugal de outro casal, “adulterando”, assim, a linhagem familiar do homem.

Hoje, é mais comum pensar sobre o sexo como prática correta com qualquer um que você ama no sentido de envolvimento “romântico”. Por outro lado, o sexo sem sentimentos românticos é tido por errado, mesmo quando os parceiros sexuais são casados. Normalmente, o “amor romântico” em questão acaba não sendo nada além de uma cobiça fantasiosa, precisamente aquilo que Jesus chamou de “adultério no coração”. A atração do indivíduo não é pautada no amor, mas na cobiça, que se disfarça de glorificação mais profunda com o objetivo de conseguir o que deseja.

Nessa perspectiva, o que é “certo” e o que é “errado” no intercurso sexual dependem do que hoje é interpretado como amor romântico. Entretanto, em geral, a posição bíblica é a seguinte: a relação sexual é correta quando atrelada a uma aliança pública e solene entre duas pessoas; incitação e deleite sexuais são uma resposta ao dom de uma intimidade pessoal exclusiva, envolvendo todo o ser de duas pessoas que juram fidelidade uma à outra.

A intimidade é a fusão mútua de almas que se inter-relacionam de modo cada vez mais profundo. O verdadeiro erótico jaz na fusão de almas. Como seres livres, a nossa intimidade não pode ser nem passiva nem forçada; como seres de extrema limitação, nossa intimidade deve ser exclusiva. Eis a realidade metafísica e espiritual que subjaz a violação amarga daquele que é traído. Também revela a condição desfigurada e superficial daquele que pratica a traição.

Na verdade, a descaracterização profunda do erótico que prevalece hoje representa a inabilidade humana, em sua versão ocidental atual, de entregar-se para os outros recebê-los com fidelidade duradoura. O relacionamento pessoal foi de tal modo esvaziado, a ponto de impossibilitar a intimidade. Assim, questionamos com ar de naturalidade: “Por que não?”, ao contemplar o adultério. Por que se preocupar com o rompimento de algo que não há nada para ser rompido?

Um dos aspectos mais reveladores sobre o indivíduo contemporâneo é o fato de ele não encontrar razões para não cometer adultério. Todavia, a intimidade é uma fome espiritual da alma humana; não podemos escapar dela. Isso sempre foi verdade, e continua sendo hoje. Vivemos batendo na tecla do sexo na esperança de extrair um pouco de intimidade, mas em vão. A intimidade surge apenas no contexto de uma fidelidade individualizada na esfera do reino de Deus. Tal fidelidade é violada tanto pelo “adultério de coração” quanto pelo adultério no corpo.

Dallas Willard, A Conspiração Divina, p. 216–218.

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