Genética

Eu acho que puxei as minhas melhores qualidades e os meus piores defeitos da minha mãe.

Regiane Folter
Histórias que queria ter contado

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Também puxei o cabelo, o formato do nariz e uma marca de nascença no bumbum. Quando ela estava grávida de mim, sonhava com uma menininha que corria pelo quintal, a cabeça cheia de cachos e olhos azuis tão diferentes dos dela. Isso é o que ela conta. Será que ela imaginava também naquela época que sua filha teria os complexos e as belezas que tem, por dentro principalmente? Será que ela temia que eu fosse acabar parecida com ela em tantos aspectos, como uma extensão sua, um pedaço dela que escapou, mas que não chegou muito longe?

Eu amo as mãos da minha mãe. Dedos grossos, sempre cheio de anéis, unhas grandes pintadas. É uma mão pequena, mas tem força. Tanta força que com essas mãos ela não é tão boa em fazer algo delicado como um cafuné. Mas sabe cozinhar a comida que eu gosto, escrever os bilhetinhos que eu guardo na carteira, segurar meu ombro quando eu sinto que vou cair.

Eu amo a sua fúria, a sua vivacidade. A capacidade que tem em irritar-se com a mesma intensidade por coisas bobas e problemas de vida ou morte. A maneira como ela arregala os olhos e defende até a última gota de saliva as coisas pelas quais acredita. Amo sua doçura, sua compreensão. A leveza que ela consegue colocar nas palavras quando alguém precisa de conforto. Amo sua sabedoria, seu entendimento do mundo, uma mania de estar sempre certa e saber um pouco de tudo.

Essas coisas eu não puxei dela. O que eu sim puxei foram os cachos rebeldes castanhos, que nascem desde a raiz tão enroladinhos, tão determinados a ser cada um de um jeito, tão próprios da nossa personalidade decidida.

Eu puxei a sua garra, a sua vontade. A sua inabalável certeza de que a gente tem que continuar caminhando, com medo mesmo. Essa áurea de rocha, essa solidez, que convida outras pessoas a se apoiarem na gente, mesmo quando sentimos que com apenas um sopro vamos cair. Puxei as lágrimas fáceis — embora conforme os anos passem, ela chore cada vez mais e eu cada vez menos. Puxei o jeito de perder o sono se alguma coisa me preocupa, me descabelar e dar voltas e voltas em um problema, buscando a solução — que às vezes é mais fácil do que pensamos.

Nós duas falamos bem em público, conseguimos chamar a atenção das pessoas e fazer com que nos escutem. Elas se atraem por nós, de uma maneira inexplicável, porque nenhuma das duas é uma grande beleza. Amamos comer, ainda mais juntas e é divertido quando uma mostra pra outra um novo restaurante ou um prato diferente. Amamos ler, principalmente ler o mesmo livro e falar sobre ele por horas e horas depois. Amamos séries, e acabamos seguindo as mesmas temporadas e apaixonando-nos pelos mesmos galãs.

Tem um monte de coisa diferente, também. Eu gosto de nadar, ela nunca pode gostar. Não consigo brigar direito, enquanto ela entra em qualquer discussão já vencedora. Ela prefere o salgado, eu prefiro o doce. Ela tem preconceitos, eu tenho outros.

Acho que algumas coisas a gente compartilha também, mas nunca tive certeza. Eu me sinto tão insegura e acho que isso é algo que ela já sentiu nessa trajetória de ter dois filhos pra criar e muita batalha pra enfrentar. Eu me sinto perdida em minhas escolhas às vezes e sei que ela deve ter tido suas dúvidas também, mas nunca se permitiu mostrar-se frágil porque aprendeu desde cedo que a fragilidade pode ser tão útil quanto perigosa.

Há tanto dela em mim e eu me sinto bem ao ver também as coisas que deixei de mim nela. Um orgulho, uma sensação de que já sou grande e que também posso ensinar uma ou duas coisas para quem sempre foi minha maior professora. Não posso dizer quando ou como, mas nas nossas trocas de sapatos e de ideias acabamos fazendo também um intercâmbio de almas, tão fascinadas uma pela outra, que era impossível não haver uma fusão. Vejo outras pessoas que não tem a mesma conexão com suas mães e isso me aparece tão pouco natural. Mal sabem elas do prazer que é manter esse cordão umbilical invisível.

Não há lugar onde eu me sinta mais completa do que em casa, com ela, com quem aprendi a voar.

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Regiane Folter
Histórias que queria ter contado

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