Transplante

Era uma vez um coração de metal. O meu.

Regiane Folter
Histórias que queria ter contado
4 min readJul 30, 2017

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Há muito tempo atrás, era um coração normal. Agora, é uma máquina de sentir. Algumas noites eu não posso dormir por causa do ruídos das engrenagens, o barulho incessante e baixinho que sai da mina caixa torácica. Como um pequeno relógio, mas que não precisa dar corda. Embora, uma vez ou outra, seja necessário apertar um parafuso.

Era uma vez um coração de carne e sangue, que pulsava sadio em seu ritmo incansável. Sangue para dentro, sangue para fora. Para minha decepção, essa não é a única atividade desse órgão curioso. Um coração saudável pode fazer muito mais. É ele que mantém suas veias cheinhas, redondas, em um constante movimento de vida. Mas ele também te enche de algumas coisas que não se podem ver, que não brotam das feridas quando você se corta, mas que te fazem sentir pleno ou vazio, cheio de energia ou apático de doença.

Meu coração de carne e osso empurrava meu sangue de um lado para o outro e também meus pensamentos, minhas vontades, meus sonhos. Meu coração de carne e osso me fez imaginar, criar mundos de mentirinha, acreditar.

Me apaixonei, me encantei, aprendi o que era o amor e a alegria. Mas meu coração de carne e osso não era blindado como esse que tenho agora e não pode me proteger dentro de uma bolha de bons sentimentos. Meu coração de carne e osso me fez conhecer a decepção, a raiva, o arrependimento. Me fez sentir desde a felicidade mais palpável até a angústia mais cinzenta. E eu não gostei de me ver preso assim em um elevador de emoções. Decidi trocar.

Era uma vez um coração de papel. Não levou nem cinco minutos para criá-lo: um tutorial de origami no Youtube e voilà! O simpático pedaço de papel tomou o lugar da maçaroca de carne e eu me senti subitamente mais fraquinho. Não sei se você sabe, mas um coração de papel é muito, muito suave. Quase não tem força para fazer o corpo funcionar. Fui obrigado a estar sempre descansando, as tonturas não me deixavam caminhar por muito tempo ou muito longe.

Até que foi legal esse período de férias no sofá, embora a cabeça anuviada não seja exatamente uma sensação muito gostosa. Mas pelo menos a fraqueza me fazia esquecer, passar mais tempo dormindo que acordado. Deixei de pensar nas causas da minha dor, do sofrimento que o coração de carne me tinha feito experimentar. Mas não pude deixar de sonhar.

Na realidade, dormir tanto me fez sonhar mais que nunca. E por algum tempo não pude mais diferenciar o que era mundo real e o que era ilusão. Era triste acordar e me perguntar onde estava, incerto, perdido. Era fácil perder-me na bagunça que eram meus sonhos e que, inevitavelmente, me levavam a reviver momentos que não me faziam sorrir. E um coração de papel não é muito bom em contato com lágrimas. O papel fica ainda mais fininho, se vai desfazendo, vai desaparecendo, vai virando farelo. O buraco no meu peito voltou.

Era uma vez um coração de vidro. Esse era bem sólido, pesado de verdade. Eu me sentia bastante cheio, como uma constipação que nunca passava. Mas era resistente, e tudo o que batia nele, voltava. Foi um desafio, tenho que admitir, treiná-lo para entender que meu sangue ele deveria deixar entrar, já que parte do seu trabalho era filtrá-lo.

O coração de vidro acabou se acomodando e até tomou gosto pelo sangue, que entrava quentinho e saia gelado, límpido, até um pouco menos vermelho. Em pouco tempo, o meu novo e anticéptico órgão me deixou bastante gelado, por dentro. Por um lado era bom, porque o frio interno me deixava um pouco entorpecido para os sentimentos que tanto me assustavam. É mais fácil concentrar-se nos calafrios que nas emoções menos palpáveis, e meu corpo não me dava outra opção. O problema era que, aos pouquinhos, meu lindo coração de vidro me estava matando. E meu médico foi irredutível: era hora de uma nova cirurgia.

Era uma vez um coração de metal. Não era tão bonito como o de vidro, nem tão fácil de fazer manutenção como o de papel. Mas até agora, é o que mais tem servido. Suas peças foram tiradas de diferentes máquinas, juntadas umas com as outras com óleo, correias e parafusos. Meu coração de metal é ainda mais pesado que o de vidro e às vezes eu sinto que tenho dois órgãos no meu peito em vez de somente um. Mas ele é mais inteligente que os outros dois, programado para limpar meu corpo e nada mais.

Ele reconhece perigos em meu humor e ativa um alarme quando pressente que eu estou perto do perigo. O problema do meu eficiente coração de metal é que ele não entende a diferença entre um sentimento bom e um mau, e dessa maneira acaba me afastando de tudo que eu amo. A única coisa que ele entende é o processo prático de bombear sangue pelas veias do meu corpo e qualquer outra atividade subjetiva deve ser descartada. Eu me acostumei com o alarme e me condicionei a me afastar, me condicionei a estar sozinho, a sobreviver.

Mas ainda me falta um coração que possa ser compatível com viver.

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Regiane Folter
Histórias que queria ter contado

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