União

Nos primeiros dias, meu mundo era quadrado.

Regiane Folter
Histórias que queria ter contado
7 min readAug 6, 2017

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Esse é Thelmus :)

Eles pensavam que eu estava com muito medo (e eu estava mesmo) e que de tanto medo não podia ver nada de dentro da caixa de papelão, mas eu podia sim. Eu via tudo com meus grandes olhos amarelos. Sabe, minha curiosidade normalmente é maior que meu medo e talvez isso seja um problema, às vezes. Talvez fui muito curioso e assim terminei nas ruas, descobrindo todos os dias um mundo novo. Descobrindo todos os dias como as pessoas podem ser cruéis com os gatos, principalmente os curiosos e que caminham sem rumo. Por isso quando cheguei nesse lugar novo, onde eu não reconhecia nada e não sentia meu cheiro em lugar nenhum, eu preferi ser precavida. Observar de um lugar seguro, de um lugar onde pudesse estar no controle do que se passava em todos os meus lados, esquerda, direita, topo, chão. Eu enchia quase toda a caixa de papelão, com certeza ninguém poderia me surpreender lá.

Do meu refúgio eu via os rostos ansiosos dos humanos. Uma garota com um pelo engraçado e um garoto com grandes olhos verdes. Eles acenavam e falavam comigo, mas eu só conseguia escutar meu coração batendo forte. Medo. Curiosidade. Onde eu estava? Não estava entendendo nada. Antes de chegar naquele lugar, eu havia vivido em outra casa. Era um lugar amplo, que ficava no alto de uma grande escadaria. Humanos vestidos de cinza tinham me levado para lá depois de me encontrar na rua. Muitos animais viviam ali e por algum tempo eu pensei que aquele seria meu lar. Os primeiros dias naquele lugar, com seus miados e latidos infinitos, também foram difíceis. Mas eu reconheci naqueles bichos as mesmas dores que eu tinha vivido. Haviam cicatrizes como as minhas e olhos grandes assustados como os meus. Estávamos juntos na nossa desconfiança contra as garotas de cinza que vinham várias vezes ao dia trazer comida e distribuir afagos para os que estavam ali há mais tempo. Elas pareciam boas, porque também vinham se alguém tinha dor de barriga ou um ataque de pânico. Mas todos nós tínhamos conhecido outras pessoas que também pareciam boazinhas, no princípio. E que no fundo não eram. Donos que nos abandonaram, pessoas que nos machucaram, crianças ou adultos que achavam engraçado o nosso medo, a nossa dor. Aqueles outros animais haviam conhecido a crueldade e eram meus irmãos de certa maneira. Com o passar dos dias eu comecei a sentir que pertencia àquele lugar.

Até ser levada embora. De novo. Me enganaram (como todos os humanos fazem) para me fazer entrar em uma caixinha metálica que fez clic na porta quando eu entrei. Uma hora depois, chegávamos a este local, onde a menina e o menino sorridentes tentavam me persuadir a sair da caixa de papelão. Eu ainda estava paralisado de terror de toda a caminhada para chegar até ali. Havíamos passado pelas ruas que um dia eu conheci em liberdade e todos os ruídos e cores me deixavam confuso. Iriam me soltar de novo? Um misto de pânico e alegria enchiam minha cabeça enquanto a caixa se movia num terremoto de passos e eu pensava muito rápido e via as coisas e tentava escapar e não me mexia com medo de estar livre de novo. Eu reclamava o mais alto que podia, mas não me davam bola. Quando a caixa finalmente parou de sacudir e a porta se abriu, eu saí cauteloso. Não havia ruído ali. Poucas cores. O chão era quentinho e marrom e as paredes eram brancas. Haviam poucas coisas naquele grande quadrado, uma mesa negra, um par de cadeiras, caixas e outros objetos engraçados espalhados pelo chão. Quando vi as duas janelas, me descontrolei. Trotei veloz pelo espaço, buscando uma maneira de escapar. As duas janelas estavam trancadas, portas também. Não havia lugar por onde fugir. E se eles quisessem me machucar? E se eles me fizessem mal, de novo e de novo, até me deixar com as mesmas marcas que eu tinha nas duas orelhas? A caixa de papelão era minha única defesa.

Pelos próximos dias eu tentei fazer o mínimo de barulho possível. Não queria chamar a atenção, quase não sai da caixa. Havia comida e água em potinhos coloridos por perto, mas eu não queria comer nada. E se tivesse algo errado com a comida? Meu estômago roncava e os dois, o garoto e a garota, vinham a cada momento ver como eu estava. Eles pareciam decepcionados, mas esperançosos. Falavam comigo palavras que eu não conhecia, mais carinhosas do que qualquer outra que eu já tinha escutado. Não haviam gritos, nem pancadas. Eles só pareciam querer que eu respondesse. Pouco a pouco fui entendendo que eles esperavam que aquela fosse minha nova casa. Era estranho e assustador pensar que eu estava presa ali. Quando eles saiam, eu aproveitava para conhecer o lugar. Era um espaço pequeno e hermeticamente fechado. Eles realmente não queriam deixar uma só brecha para eu fugir. Pareciam preocupados comigo. Mas eu já tinha visto aquilo antes, já tinha sido enganado antes. Preferi não me arriscar e quando ouvia o barulho da chave na porta corria para meu novo esconderijo atrás do fogão. Eles tinham paciência, me tiravam de lá. Também tiveram paciência quando eu fiz minhas necessidades fora da caixinha de areia. É, eu já tinha aprendido a usar a caixinha, não tenho orgulho do que fiz. Mas precisava de provas, precisa de provas de que eles realmente me queriam o suficiente para que eu deixasse minha marca naquele lugar.

Haviam brinquedos e um colchãozinho azul que depois de uma cheirada eu decidi que não era para mim, e assumi de uma vez por todas a caixa de papelão como minha cama. Eles se renderam e me deram uma toalha azul para deixar a caixa mais cômoda. Eu aceitei. Foi assim, com renúncias e meios termos, que começamos a comunicarmos. Logo eu já dormia, comia e, não posso mentir, deixava ele coçar minha cabeça e ela acariciar minhas costas. A comida e os carinhos eram gostosos, então comecei a fazer xixi e cocô no lugar certo. E até escondia a sujeira depois, para não incomodar ninguém! Cada primeira vez era uma descoberta. A primeira vez que deixei que ele me pegasse no colo. A primeira vez que eles me deixaram entrar no outro quarto da casa. Eles passavam muito tempo fora e logo me peguei sentindo falta deles. Da voz suave dela, do toque quente dele, das vozes engraçadas que eles usam pra falar comigo. Quando a chave na porta anuncia que alguém está entrando, eu ainda estremeço com uma pontada de susto. Seriam eles ou outras pessoas nem tão legais? Até hoje, são sempre eles. E quando eu reconheço o cheiro, aquele cheiro fresco que ele tem ou o cheiro de fruta do pelo dela, eu posso respirar aliviada.

Vou descobrindo pouco a pouco mais sobre aquela casa e mais sobre eles. Já descobri que o melhor lugar para dormir é no colo do garoto, enquanto ele acaricia de leve minha cabeça com uma mão. Já sei como me jogar no chão com as patas para o alto e assim ganhar carinho na barriga. Entendi as regras da casa e acho que eles também estão entendendo as minhas. Até que é divertido. Fazia tempo que não me sentia segura e quente, e dona de um lugar só meu. Há comida e amor, sempre. O meu cheiro está em todos os lados, inclusive neles. Somos essa mescla engraçada. Meu pelo escuro não é da mesmo formato dos pelinhos ásperos que o garoto tem na cara. Minhas patas são muito menores e mais peludas que as patas da garota. Mas nenhum dos dois me trata diferente por causa das nossas diferenças. Somos uma mistura de cheiros, carinhos e pelos de formatos e cores distintas. Somos uma espécie de família, com certeza a mais amorosa que eu já encontrei.

Às vezes eu sinto falta das ruas, sinto falta de caminhar por aí e encher meus olhos amarelos de novas formas, cores e paisagens. Às vezes sinto falta dos amigos da casa no alto da escada, me pergunto se eles tiveram a sorte de continuar lá ou se tiveram mais sorte ainda e encontraram uma casa e um par de humanos só deles, como eu. Só espero que estejam felizes e aquecidos, e que não se machuquem mais. Eu sinto saudades de algumas coisas sim, mas gosto de estar onde estou.

Gosto da minha caixa de papelão, dos potinhos de comida e água que nunca se esvaziam, dos afagos que nunca terminam. Gosto dos meus humanos, de ver como eles se movem pra lá e pra cá, gosto de esfregar minha cabeça em suas pernas e de fazer eles se agacharem para me abraçar. E gosto mais ainda porque eles se abraçam muito também e me deixa feliz saber que eles se gostam quase tanto quanto gostam de mim. Gosto de ter um nome, que eles escolheram e que é a minha cara, eu tenho que admitir.

Essa é minha casa, esses são meus humanos e eu sou Thelmus. Um gato curioso e feliz.

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Regiane Folter
Histórias que queria ter contado

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